sexta-feira, 16 de abril de 2010

BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O MORRO DA CASA-GRANDE

Li a novela O Morro da Casa-Grande, de Dílson Lages Monteiro (Teresina, Nova Aliança, 2009) de um só fôlego, para pura fruição. Depois, reli-a e tresli-a, com olhar crítico. Trata-se, a meu ver, de uma novela em tom de crônica porque os personagens e os três núcleos tramáticos não ousam deixar, ou deixam apenas timidamente, a condição de RELATO para alçar-se à de NARRATIVA . É que uma narrativa, por mais descritiva (sim, há descrições de ações) que seja, resulta de uma CRISE no desenrolar normal dos eventos, tornando-se um NÓ a ser desatado, quer para os lados, em forma de novela, quer para a profundidade, em forma de romance.

O problema, se isso for um problema, é que em O Morro da Casa-Grande o relator (não me atrevo a chamá-lo de narrador) insiste em privilegiar mais a descritividade de um lugar (Barras-PI) num dado tempo (década de 1950) do que ariadnicamente puxar, até maiores consequências, os fios que saem dos três núcleos referidos (a derrubada da igreja-matriz, o sumiço e morte de Clemílson e a passagem, aliás excelente prosa poética, dos ciganos pela cidade). Isso só é feito timidamente, mais à maneira de um relator que de um autêntico narrador, com pequenas vantagens narrativas. Frente a frente com o goleiro, Dílson Lages perde o gol.

Questão de escolha. Entre uma novela mais densa ou até um romance, o autor optou por nos dar uma crônica de mais ou menos 130 páginas. Nada contra a crônica, que é um grande gênero, mas talvez a literatura brasileira de autores piauiense estivesse agora mais enriquecida se o vezo narrativo houvesse, em O Morro da Casa-Grande, predominado sobre a cronicidade. Não que não tenhamos ganhado: a novela é boa, bem escrita, e está acima da média do que vemos comumente aparecer aqui nesta terra de muito sol e, entra governo sai governo, sempre pobreza tanta. Mas...

Também há, penso eu, o desperdício de grandes personagens, dos quais o mais pobre é o próprio relator, um menino que só não chega a ser piegas porque o autor, ainda bem, o controla e não o deixa desandar para a nostalgia, que existe, porém é, graças a Deus, contida. Os coronéis Firmino e Custódio e o trabalhador Tonho são, por exemplo, personagens de grandeza potencial que aparecem, na novela, apenas como esboços. Ora, mesmo numa novela os personagens podem crescem verticalmente, como é exemplo palmar o Ulisses de Ulisses entre o Amor e a Morte, de O. G. Rêgo de Carvalho, um monumento da literatura brasileira. Nem se trata de uma sugestão de que a novela O Morro da Casa-Grande se converta no romance O Morro da Casa-Grande: não raro a emenda sai pior que o soneto.

Como o que faz de um texto um texto literário é, a rigor, a estilização da linguagem que, por isso, atrai para si mesma as atenções da recepção, desviando-as de outros elementos secundários, como o enredo, patente é que, em O Morro da Casa-Grande, Dílson Lages Monteiro nos brinda com uma linguagem enxuta, escorreita, precisa. É claro que me causa estranheza qualquer lugar, no caso Barras, em qualquer época, no caso a década de 50, desprovido de palavras e expressões interditadas, como gírias (não precisa exagerá-las) e palavrões (idem), a denunciar a onipresença, decerto IRREAL, de um formalismo lingüístico e de uma assepsia que, espera a literatura, não advenham de nenhum moralismo, com ela incompatível. No entanto, meu maior medo, ao saber que a trama, afinal pouco desenvolvida, se passava no interior do Piauí, foi o de termos ao fim e ao cabo mais uma obra caudatária de um regionalismo tacanho, com expressões regionais metidas a fórceps no texto, à Fontes Ibiapina. Isso NÃO ocorre em O Morro da Casa-Grande, que tem evidentes marcas regionais sem ser, meramente, regionalista.

Recomendo a leitura de O Morro da Casa-Grande e saúdo a boa estreia de Dílson Lages Monteiro na prosa de ficção. O Piauí, tão infelicitado por maus políticos, cada qual disputando quem é o pior, o Piauí também carece de bons ficcionistas. Você é bom, Dílson. Avante!

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Artigo publicado no jornal Diário do Povo do Piauí, Teresina, 13 abr 2010, p. 18.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

UM ESTUDO, ATÉ QUE ENFIM, NÃO MANIQUEISTA!

Refiro-me à dissertação de mestrado de Paulo Gutemberg que, por razões profissionais, tive o privilégio de ler inédita. Publicado, e tomara que ganhe título significativo, sem o costumeiro ranço acadêmico, o estudo de PG será, a meu ver, um DIVISOR DE ÁGUAS na nossa historiografia, em especial porque

a) DENUNCIA e ROMPE com o nefasto maniqueísmo que nos tem ideologicamente dominado, impedindo, ao pôr de um lado mocinhos sempre puros e infalíveis (índios, negros, pobres, homossexuais, mulheres, comunistas, guerrilheiros, etc) e do outro vilões sempre impuros e desumanos (colonizadores, brancos, fazendeiros, heterossexuias, capitalistas, militares, etc), de ver a realidade em sua riqueza e complexidade, sem as suas muito matizadas nuances;

b) DENUNCIA e ROMPE com o discurso (utilíssimo para as elites) vitimológico a que tanto recorremos para culpar os outros (o insensível governo central, o egoísmo das demais unidades da federação, o passado com tantos índios e negros e pobres massacrados, etc) pelos nossos nossos próprios vícios (o de abaixar a cabeça a qualquer poder central, por exemplo) e incompetências, e..., e ..., e...;

c) DENUNCIA e ROMPE com a saudade de um passado glorioso porque feito de indígenas e negros e que, por não o termos mais, pelo menos em seus termos tão idílico-paradisíacos (sem conflitos, como se isso fosse possível entre humanos), nos lançou, coitadinho da gente, no abismo nefando deste desigual agora. Ora, por que este nosso terrível agora não pode também explicar, ao reverso, um passado não tão fabuloso assim?

O estudo de PG põe o dedo na ferida desses discursos eivados de interesses nem sempre elevados, VENHA DE ONDE QUER QUE VENHA, ou seja, sem maniqueísmos redutores. E não se trata de denúncias vazias, mas fartamente documentadas, nem de discurso soberbamente unilateral, mas vigorosamente demonstrado. É claro que PG tem suas inclinações (políticas) para um extremo ou outro da realidade (todos temos!), porém não deixou de ver, como sói acontecer entre ideólogos mais que entre historiadores, que do vermelho ao violeta há BILHÕES de tonalidades no espectro. Isso, penso eu, não é pouca coisa numa historiografia que nem a piauiense, tão plena de verborragias.

Sim, há muito tempo um trabalho acadêmico não me encantava.