terça-feira, 25 de janeiro de 2011

E NEM... PIAUÍ?, de Airton Sampaio

Agora que o Psiu, o sistema seriado de ingresso na UFPI, acabou, porque um modelo evidentemente esgotado, não pode nos sobrar, como mecanismo de seleção vestibular, apenas o ENEM.

Não que o ENEM não seja um bom sistema de escolha dos melhores candidatos a uma vaga nas universidades brasileiras que a ele aderiram, como a UFPI. Na verdade, o ENEM representa um avanço pedagógico dos mais expressivos, ao mudar a orientação da decoreba pela filosofia do raciocínio, da reflexão e da resolução de problemas cotidianos, sem dizer de um mais percuciente tratamento dado à prova de redação que o que, localmente, fazíamos. É óbvio que o ENEM precisa de vários ajustes, no que tange, por exemplo, à extensão cansativa dos enunciados e, por conseguinte, das provas, e ao descalabro, incompetência mesmo, da logística, que tanto tem irritado estudantes e professores.

Questões, pois, sanáveis. Algo, porém, é muito mais grave que todos esses desacertos, e diz respeito ao Piauí. É que o ENEM, elaborado no centro-sul do país, decerto fará tábula rasa de aspectos peculiares do nosso estado, como a nossa literatura, a nossa história e a nossa geografia. Se ficarmos somente com os dias de ENEM, uma literatura específica, ainda que inserida na brasileira, uma história própria e uma geografia singular, mesmo que partes da nacional, não serão abordadas por mentalidades radicadas no centro político e econômico do país, o quase sempre discriminatório eixo Rio–São Paulo. Não se trata, no caso, de um bairrismo meloso nem de uma piauiensidade oca, tão mais comuns entre nós após o governo ufanista do PT, mas de uma NECESSIDADE que temos (ainda), como periferia do capitalismo, de sublinhar nossos melhores valores e fatos históricos, geográficos e literários. Isso fica evidente quando não é segredo para ninguém que Da Costa e Silva, por exemplo, apesar de ser um dos maiores poetas simbolistas brasileiros, não tem a dimensão nacional de um Cruz e Souza talvez (sim, talvez) por haver nascido na periferia da periferia do Brasil. E que não se leia isso como a (re)afirmação do nosso eterno e lamentável Complexo de Vira-latas, nós que ficamos todos amuadinhos a quaisquer anedotas sobre o Piauí, às vezes merecidas, mas não hesitamos, em nome de uma super-hospitalidade que, por ser demasiada, beira a subserviência, não vacilamos em estender tapete vermelho a qualquer Jardel (lembram-se dele?) da vida.

Por isso, e por outras razões que o espaço de um artigo não permite elencar, como a sinalização de conteúdos para o nível médio de ensino, por isso é que a UFPI deve sublinhar nossa realidade periférica ao menos com uma prova a mais no Enem, que aqui tomo a liberdade poética de chamar de PROVA PIAUÍ, cujo peso, no cômputo geral do Exame, somente uma análise acurada da Copese pode definir. Eis a PROPOSTA, para o indispensável debate público sobre o tema, a fim de que não o deixemos inteiramente nas mãos dos iluminados do Conselho Universitário da UFPI.
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Airton Sampaio é escritor e professor no Departamento de Letras da UFPI.

Fonte: Diário do Povo do Piauí, Opinião, 24 jan 2011, p. 2.

domingo, 16 de janeiro de 2011

A NOVELÍSTICA DE CLODOALDO FREITAS, de Airton Sampaio

DECEPÇÃO. É o que senti quando li três das cinco novelas de Clodoaldo Freitas (Teresina - PI, 1855 – 1924) em boa hora republicadas por Teresinha Queiroz em 2009, via Editora Ética, de Imperatriz, MA. Trata-se de Memórias de um velho (Teresina, Pátria, 1905 – 1906), Coisas da vida (São Luís, Diário do Maranhão, 1908-1909) e Por um sorriso (Teresina, Correio do Piauí, 1921), todas originalmente saídas em jornais, em forma de folhetim, o que até explica, mas não justifica, muitas das suas inconsistências. Ainda bem que existem, ao lado delas, o romance histórico O Bequimão (São Luís, 1908), e uma outra novela, Os bandoleiros (Belém, 1922), que elevam o nível da literatura clodoaldina.

O primeiro problema que se revela é que essas três primeiras narrativas citadas são manifestações de um romantismo não só retardatário (basta lembrar que Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, que sepultou de vez a prosa romântica, é de 1881!), mas também, e principalmente, diluidor, porquanto piegas, meloso e superficial. Nelas, há de muito bom as descrições precisas (“O Igarapé-Açu, pequena vila sossegada e aprazível, está situada à margem da estrada de ferro de Bragança, a 116 km de Belém. Seu clima...”) e a concisão dos diálogos, ágeis e funcionais, denunciando a vocação do autor para a contística. Perde-se, porém, muito da boa idealização do amor romântico pelo excesso de amores à primeira vista, que ultrapassam os limites da verossimilhança, que aliás resta fulminada de vez, em narrativas não pertencentes ao gênero fantástico, pela sucessão de eventos os mais disparatados (inúmeros e incríveis casamentos, incontáveis e providenciais viuvezes, rapidíssimas riquezas e empobrecimentos, etc), a não ser que, para redimi-los, os enquadremos como “causos” ou “lorotas”.

Clodoaldo Freitas escreve bem (apesar de prejudicado pela revisão, que não atentou devidamente para a boa virgulação que os textos mereciam), mas erigiu três novelas inconsistentes, que não podiam mesmo deixar entre nós uma tradição de prosa digna de continuidade e que sublinham ainda mais o valor literário de Um manicaca, de Abdias Neves (Teresina, 1909). Esse romance naturalista, apesar dos seus defeitos, como as longas digressões anticlericais, cada vez mais se afirma como a primeira narrativa piauiense de qualidade, o que se torna mais óbvio se a compararmos à novelística clodoaldina, cuja única novidade é um romantismo temporão entremeado, aqui e ali, por um discurso anticlerical em voga na época, embora mais contido que o de Abdias.

Sei que o homem é o homem e suas circunstâncias. Isso, entretanto, não vale para justificar a prática, já no começo do século 20, de um folhetinesco romantismo quando a luz do melhor romantismo brasileiro há muito se apagara (é como, na música, querer ser “jovem guarda” em 2010!). É claro que se pode sempre dizer, como faz Teresinha Queiroz na quarta capa de Memórias de um velho, que Clodoaldo Freitas “trata os caminhos e descaminhos do amor e da vida como metáforas da política brasileira e de seus sonhos de transformação social”, metáforas difíceis de serem comprovadas, amiudadamente, nos próprios textos. Outra saída para a elevação artificial do valor literário dessas três novelas clodoaldinas seria interpretá-las como paródias do mais desbragado romantismo, o que também exige pormenorizada, e igualmente complicada, comprovação textual.

Há, no entanto, um Clodoaldo Freitas bem melhor em O Bequimão (São Luís, 1908), romance histórico de tessitura mais complexa, passado em São Luís, no Maranhão, no século XVII, e em Os bandoleiros (1922), novela ambientada numa cidadezinha perdida na Amazônia (Igarapé-Açu – PA) cujos costumes e política são sintética e interessantemente documentados. Talvez haja também um Clodoaldo Freitas mais consistente e literariamente mais contributivo na seara do conto de matiz naturalista, que desconfio ter sido, o conto, sua verdadeira vocação literária. Veremos isso em outro artigo, que a este damos por findo, afirmando que amar de verdade uma literatura não é louvar, a qualquer custo, tudo o que a ela pertença, mas dar às produções do seu acervo uma real dimensão, sem puxar o elástico para além da sua capacidade de resistência, o que redundaria num acrítico bairrismo mistificador.
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* Airton Sampaio é escritor e professor de língua portuguesa e literatura brasileira no Departamento de Letras da UFPI.
Fonte: Diário do Povo do Piauí, Opinião, 15 jan 2011, p. 2.

sábado, 8 de janeiro de 2011

O TRÁGICO E A TRAGÉDIA NO "CONTETO DE NATAL", DE AIRTON SAMPAIO

Emerson Araújo*                                                                                                

“A relação entre o trágico e a tragédia
não pode ser tomada pela simples
categorização gramatical, já que a
relação semântica entre os dois
conceitos é bem mais complexa do que
parece na busca de uma resposta
superficial.” (Carlos Pinto Corrêa in O
trágico e a tragédia, vinculação e
escolha).

Aproveitando a assertiva de Carlos Pinto Corrêa que procura estabelecer certa distinção entre o “trágico” e a “tragédia”, adentro na estrutura elaborativa do “Conteto de Natal” de Airton Sampaio para tentar vislumbrar a possibilidade desta diferença.
Antes de qualquer especulação sobre a proposta do parágrafo anterior, torna-se necessário dizer que a Airton Sampaio em sua contística tem nos apresentado um exercício, quase cotidiano, de projeto construtor de arte literária privilegiando a limpeza frasal como nenhum outro contista de sua geração. Aquilo que parece ser uma obsessão elaborativa, em Airton Sampaio e em sua narrativa, nos leva a crer, também, que é a inquietação de um autor em conflito com a sintaxe frouxa, redundante ainda tão comum no universo da prosa literária. A linguagem frasal posta na obra deste autor é um trabalho de esmero que surge vigorosa sempre quando ele nos presenteia com um texto novo.
Mas o foco aqui não é a obra de Airton Sampaio como um todo, é apenas uma pequena mostra dela feita através do texto: “Conteto de Natal” publicado no blog da Confraria Tarântula em 2009 e reprisado no blog do autor em 24/12/2010. Este conto, a princípio, é uma demonstração cabal de que a linguagem frasal enxuta quer suplantar todos os outros elementos estruturais da narração. Linguagem, a parte, se percebe que existe um conteúdo pano de fundo que delineia a especulação teórica do diferencial entre o trágico e a tragédia como quer Carlos Pinto Corrêa in O trágico e a tragédia, vinculação e escolha.
“Conteto de Natal” nos parece o melhor exemplo, na literatura, para se diferenciar trágico/tragédia. Com a predominância do discurso direto o enredo montado no conto remete para a tragédia nos seguintes moldes segundo MOST (2001).: “O trágico, expressão mais comum no nosso vernáculo, refere-se ao que traz a morte, a desventura, o calamitoso ou sinistro. Em seu sentido literário significa esplêndido, grandioso, não inteligível, e é geralmente negativo. O seu uso coloquial moderno, quase vulgar, está em oposição ao conceito desenvolvido entre filósofos e intelectuais dos dois últimos séculos, que o vinculam à tragédia, um gênero que compreende um conjunto de textos específicos, um entendimento coloquial e outro filosófico. Na verdade o trágico descreve certos tipos de experiências ou de traços básicos da existência humana. "O termo não é estético mas antropológico ou metafísico: ele não define um gênero literário mas a essência da condição humana, em sua estrutura imutável ou como se manifesta em circunstâncias excepcionais, catastróficas". Apesar de não ser um texto teatral por excelência, mas este pequeno conto se configura com uma tragédia nos moldes apresentados pelo teórico grifado a medida que se percebe a essência do ser humano numa situação catastrófica, tendo como pano de fundo um natal atemporal e ageográfico.
Juliana, José e João personagens reduzidos de “Conteto de Natal” representam o tripé fundamental da tragédia anunciada. Estes personagens fazem parte de uma concepção trágica da passionalidade, portanto, fica difícil não compreender que toda tragédia não se monta no trágico. MOST mais uma vez é esclarecedor quando continua afirmando:“...não é acidental que o termo trágico é libertado de sua ligação com uma forma literária e generalizada para se aplicar à condição humana no exato momento da história.” Entendemos que é no exato momento da história de Juliana, José e João que o trágico movimenta a tragédia no conto de Airton Sampaio, levando-os ao catastrófico: “Aí um corpo estendido, não mexam no presepinho ensangüentado, deixem essa árvore toda quebrada quieta, fotografem tudo, alguém por favor diga à merda desse vizinho para parar de repetir esse troço, Noite feliz, Noite feliz, Pobrezinho...”
Sem mais delongas, seja na utilização do discurso direto, seja na configuração da frase enxuta, na redução do espaço e nas personagens, “Conteto de Natal” é uma tragédia moderna nascida do trágico humano no natal, ou melhor, nos natais atemporais e ageográficos.

Referências
CORREA, Carlos Pinto - O trágico e a tragédia, vinculação e escolha – http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S151994792006000100007&script=sci_arttext – 25/12/2010.
MOST, Glenn (2001) - Da tragédia ao trágico - In: Filosofia e Literatura: o trágico, Jorge Zahar Editor, Rio de janeiro, 2001
http://airtonsampaio.blogspot.com/2010/12/conteto-de-natal.html - 25/12/2010.

*Emerson Araújo é professor.

Fonte: http://emersonaraujo46.blogspot.com/search?updated-max=2010-12-25T18%3A51%3A00-03%3A00&max-results=10