sábado, 28 de setembro de 2013

NO FACE, conto de Airton Sampaio

Nunca, o rosto dela, nenhum viu. Insistiram. Suplicaram. Rogaram. Rosto e voz, não. Apareciam seios, umbiguinho, as coxas grossas, a bunda enorme, o v invertido, às vezes pelado, às vezes peludo. Não era sempre não, que se dava. E, quando ele chegava de viagem, nem celular ela usava, nem queria. Não eram poucos os gozos em que se acabava em gritos, quase se rasgando, a imaginação a mil. Perigo de trair-se com a pronúncia inconsciente de um nome? Difícil, tudo era pseudônimo e não repetia o cara, jamais. O dela ela mudava: Gisela, Sandra, Manuela... Porém a mancha no peito, sim, aquela mancha no peito, seria possível, no mundo, duas iguais? Improvável. Mas não recuou e chegou lá. Bem lá mesmo. E bota lá nisso! Aí ouviu, disfarçando desinteresse, que ele contou para ele a aventura, a mulher que mais o enlouqueceu nem o nome dela ele sabia e nem o rosto dela, sequer, ele viu. Uma puta, a porra. Um vulcão, entendeu? Cadela, potra, cabra. Ele então disse para ele, ela também ouviu, que ele não precisava disso, que ele já tinha, em casa, a mulher mais gostosa do planeta. Virou a face pro céu, incontinenti ao elogio. Aquela tatuagem no peito esquerdo dele foi ele que chamou a atenção dele quando ele chegou no bar, a camisa no ombro, a bermuda jeans. De nascença isso, ele disse. Merda congênita, essa droga. Foi rápido ao banheiro, olhou-se de frente, de costas, de lado, de perfil. Nada, nada, nada, nada. Voltou à mesa serena, até cantarolou uma canção que falava de uma moça bonita de olhar agateado. Os dela eram castanhos e comuns, muito comuns. Mas aquela pintinha na maçã direita do rosto, um coraçãozinho antigo que.. Amanhã mesmo mando retirar, se disse. Ele, agora reparava, nunca nem notara, não ia, é claro, se importar.

sábado, 7 de setembro de 2013

QUATRO CRONISTAS ATUAIS

Airton Sampaio

A literatura brasileira de autores piauienses apresenta, em seus 205 anos, poucos cronistas bons. Gênero considerado, mais do que equivocadamente, como menor, esses literários discursos sobre fatos cotidianos, em geral triviais, já tiveram entre nós, como destacados cultores, gente da estatura de Clodoaldo Freitas, H. Dobal e A. Tito Filho. Hoje, à parte a situação espacial-especial de José Ribamar Garcia, o Piauí conta, no exercício habitual do gênero, com a qualidade literária dos cronistas Rogério Newton, Cineas Santos, Wellington Soares e José Maria Vasconcelos.

No Brasil, quem deu dignidade literária à crônica foi, sem dúvida, Machado de Assis, que a praticou com o compromisso de quem sabia não ser ela um gênero apequenado, a não ser que o cronista o fosse, como sói (e dói) acontecer. Vinculada ao dia a dia ou rememorativa de eventos que um dia foram do dia, a crônica testemunha e registra, em geral via jornais e agora também por blogues, a história em movimento, a história feita por todos, a história tecida por pessoas comuns.

Se, porém, alguma restrição genérica fosse fazer a cada um dos cronistas antes citados, diria que em Rogério cansa a bandeira ambientalista, em Cineas vige a nostalgia excessiva de uma Teresina provinciana, em Wellington se dá, vez por outra, uma não muito boa expressão erótica, e em Vasconcelos contra ele depõe um moralismo católico e carola. São, como vemos, problemas não estéticos, quase impossíveis de superar-se porque mundividências, cosmovisões, pontos de vista ou, vá lá, ideologias. Na verdade, referi-me a quatro cronistas habituais, todos saborosos de ler, todos com escrita leve, todos provocadores de reflexões sobre a realidade e a vida.

Revelo que esta pequena nota a escrevi a propósito do lançamento do livro O Dia em que Quase Namorei a Xuxa, de Wellington Soares (Teresina, Quimera, 2013, crônicas), que se deu na noite de 21 de agosto de 2013, na Livraria Anchieta. O prefácio com que Ignácio de Loyola Brandão o apresenta não faz propaganda enganosa: é difícil mesmo largar o livrinho de Wellington Soares depois que se o começa a ler e, afora chatos lapsos de revisão, como "exultaram de alegria" (p. 39), “mínimos ... detalhes” (p.55) ou “cria um novo” (p. 59), ou os muitos cochilos na pontuação interrogativa e na exclamativa, penso que estou diante do melhor livro desse autor da Geração de 1970 que, antes, publicou Linguagem dos Sentidos (1992, contos), Maçã Profanada (2003, contos), Por um Triz (2007, crônicas) e Um Beijo na Bunda (2011, crônicas). Como, quando acho importante, não me omito de emitir minha opinião crítica sobre uma publicação, que o tempo dirá se acertada ou não, recordo que fui um dos primeiros que saudaram pela imprensa a estreia literária de Wellington Soares, ali pelos princípios da década de 90. Vinte anos e alguns livros depois, ele nos entrega esse saboroso O Dia em que Quase Namorei a Xuxa, resultado de sua peleja diária com a crônica, labuta que ele adora e cujos frutos nós, os leitores, degustamos. Em O Dia em que Quase Namorei a Xuxa senti desnivelados os textos Coisas de nossa democracia (p. 46-48), este mais para baixo, e Roleta russa (p. 105-107), este mais conto que crônica, mas da leitura da simpática coletânea me fica(ra)m na lembrança três personagens centrais: o angelical Avião, a destemida dona Raimunda e o impagável Tavares.

Resta por fim torcer para que a crônica evolua cada vez mais entre nós e que, por exemplo, um Danilo Damásio, que surgiu como uma esperança no gênero, a retome e torne o quarteto mencionado nesta nota um quinteto, que pode até, a depender do contista J.L. Rocha do Nascimento, virar sexteto.
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*Artigo originalmente publicado no jornal Diário do Povo do Piauí, Opinião, Teresina, 5 set. 2013, p. 18.
**Airton Sampaio é escritor e professor na UFPI