domingo, 5 de janeiro de 2014

INAÇÃO, conto-recorte de Airton Sampaio

para Assis Brasil

Ao gritar o nome da cigana, Inação viu um homem, de pele queimada, aparecer na pedra onde Sulima costumava ficar despida. Ele estava sem camisa e tinha uma faca na cintura. Inação logo reconheceu: “é um cigano”. Ouviu o mato estalar nas suas costas e sentiu que estava cercado: “aquela desgraçada”. E tudo ficou em silêncio - o cigano lá, na pedra, feito uma estátua. Inação levou a mão à peixeira e ficou à espreita. O cigano desceu do lugar onde estava e quando surgiu na sua frente já trazia a faca na mão. É
o meu branco da casa da fazenda?
- Ele mesmo.
- O branco vai morrer, ouviu?
- É? E quem vai matar?
- Esse aqui, na sua frente.

E saltou sobre Inação que, rápido, mostrou a peixeira no seu rumo O cigano se desviou ligeiro como um gato e, no desvio, conseguiu ainda tocar, embora de leve, numa das orelhas de Inação, que começou a sangrar. O cigano parecia flutuar no ar, leve como uma folha seca – dançava na sua frente, esbelto – e Inação pela primeira vez viu a cara do homem, que tinha a sua mesma altura - os olhos escuros traziam ódio, a boca estava fechada com rancor. Foi
o branco quem abusou de Sulima?
- Todos vocês são uns cachorro.

Encararam-se como duas onças. Agora mediam melhor o espaço entre os dois - Inação fitava o cigano, para melhor acompanhar seus movimentos, e pensava, “é matar ou morrer, não tem jeito”. E então se lembrou que há dez anos teria enfrentado aquele cigano sem um trisco de medo, como naquela briga no terreiro defronte à casa da fazenda, para castigar um valentão que tinha desfeiteado dona Candinha. O golpe mortal que dera no Doca Barroso fora considerado por Matias como um golpe de mestre. Era um golpe traiçoeiro, mas o homem tinha que ser ligeiro como uma criança para conseguir seu intento.

Inação fitou a cara do cigano e viu foi a cara do Doca Barroso. Aí deu uma volta no ar, dez anos mais remoçado, mudou a peixeira da mão direita para a esquerda, balançou o corpo três vezes, deu um berro que podia espantar até os espíritos da mata e atingiu o cigano bem no pé do umbigo, enfiando a peixeira até o cabo – com a outra mão amparou o golpe da faca adversária, que ainda lhe riscou os dedos, “toma, desgraçado.” O cigano caiu a seus pés, já de olho vidrado. Inação tirou, com calma, a peixeira do corpo, limpou o sangue numa folha de bananeira e começou a sentir as pernas trêmulas. Teve ímpeto de sair correndo dali quando ouviu um galho quebrado na mata - respirou fundo, o suor lhe empapava o rosto e o pescoço e sentia todo o corpo em febre. Esperou em posição de defesa. Tudo podia acontecer naquela noite, os ciganos tinham marcado a sua morte, já sabia.

O olho d’água continuava tranquilo, como se nada estivesse acontecendo. De vez em quando Inação ouvia um pequeno estalo na mata - eram eles dizendo que estavam ali. Mas não apareciam, como se esperassem que Inação tomasse sentido daqueles instantes e compreendesse que estava perdido.

Outro homem, de argola dourada na orelha direita – desta vez mais velho - surgiu na frente de Inácio. Trazia uma peixeira na mão cabeluda - a pele tostada, as sobrancelhas grossas. Inácio notou que ele mascava um pedaço de fumo, não lhe pôde ver os olhos - a lua grande havia sumido. Pensou aplicar o mesmo golpe dado no outro cigano - agachou-se na frente do homem (este era mais sereno do que o outro) - a mão segurava com firmeza o cabo da peixeira – Inácio achou o cigano mais baixo do que o anterior - rodavam em torno de um círculo imaginário, como dois touros enfurecidos antes de entrechocarem os chifres. O cigano se aproximou mais de Inação e experimentou sua destreza com um golpe de baixo para cima, com intenção de botar suas tripas pra fora. Inação deixou que o cigano tomasse duas ou três iniciativas na luta - as duas peixeiras se encontravam e lançavam faíscas no ar parado da noite - nesses instantes os dois se mediam pela astúcia e pela força. Inação viu, após os primeiros golpes, que estava diante de homem mais experimentado - ele devia ter visto o golpe que dera no seu companheiro e não cairia no laço. E teve um repente: jogou a peixeira na cara do cigano, ele tonteou, o sangue descendo do nariz - e o lnação torceu-lhe o braço até a sua arma cair no chão.

Estão desarmados agora, corpo contra corpo, bafo contra bafo, o suor dos dois se mistura - Inação sabe que não pode manter a luta daquele jeito, sente um esmorecimento e se separa do cigano – os dois apanham de um salto a arma. Inação resolve aplicar o golpe que chama de traiçoeiro, pois ninguém até aquela data tinha se livrado dele - uma volta no ar, a peixeira de mão a mão, o corpo balançando na frente do inimigo, o berro de animal ferido e a facada certeira na barriga - o cigano se amparou em Inação, ofegante, os olhos arregalados, como a dizer “este homem é um demônio” – Inação retirou a faca ensanguentada e deixou o corpo cair numa poça do olho d’água.

A luta é desigual - pensa Inação – e só há um meio de escapar: fugir, correr em qualquer direção. Sente um principio de pânico, as forcas esmorecem, sabe que não poderá mais com o próximo cigano – eles não querem um massacre, querem uma luta de homem para homem, “vão fazer assim até me acabar". Por onde andaria Matias? Na certa namorando em algum sovaco da estrada de ferro. Era um festeiro, aquele compadre, mas na hora da precisão não aparecia. E o pessoal da vizinhança, por que não surgia vivalma? E o padre, que sempre andava de madrugada, conversando com as estrelas? Pela primeira vez numa briga sentia precisão de ajuda. Inação respirava fundo e esperava, bem próximo aos corpos dos ciganos. O suor que sentia escorrer pelo peito já era frio - ou a noite esfriava com a lua escondida? "Os ciganos deixam que eu descanse, querem uma luta limpa, sem injustiça, os desgraçados". Inação tem as pernas trêmulas, a vista embaçada, aspira todo o ar que pode, estira os braços como para reunir as forças, “eles querem me acabar". Outro cigano surgiu de repente na frente de Inação, como se tivesse saído do fundo do olho d’água. Para Inação aquilo já era mais pesadelo que realidade. O cigano, de peixeira em punho, não era um homem de carne e osso, já era um fantasma. Teve vontade de gritar e gritou: “Desgraçado”. O eco respondeu no fundo da mata: “Desgraçado”. O
branco sabe que vai morrer agora?
- Traz toda a tua gente que eu mato tudo e dou pros urubus.

O cigano mostrou a peixeira reluzente e fez menção de atirá-la nele. Inação se agachou, o cigano pulou em cima dele e, com um pontapé, o desarmou. Inação, agora desarmado, não pensa mais em correr, o ódio tomou conta dele - ouve a voz de Sulima, a sua gargalhada mato a dentro, sente o perfume de seu corpo, “desgraçada”, e grita, “desgraçado”. Sente um novo ânimo, o suor está quente no rosto, a vista mais clara - a lua grande saía das nuvens para ele ver melhor o homem à sua frente.

O cigano não deixa que recupere a peixeira - joga-a no olho d'água. Inação tem ímpeto de se atracar com o cigano, mas respeita a faca reluzente em seu peito, quando o cigano, num movimento rápido, corta-lhe bem fundo os dois braços, um de cada vez. Ele sangra, mas não sente dor. O cigano mostra-lhe os dentes, vai picá-lo aos poucos, como Inação pretendia fazer com um deles, “depois dou pros urubus", então corta de leve o peito direito de Inação, que se defende com as mãos vazias, também riscadas pela peixeira afiada. O cigano só espera que Inação, na sua fúria, avance, para receber sucessivos cortes na pele - ele sangra, a roupa já está toda ensopada. Ao gritar mais uma vez “desgraçado” Inação sente que as forças sumiam de vez e não estava longe o seu fim. O filhinho morto, a Zita, a Frecheira da Lama são apenas um sonho... O cigano deixa que Inação o abrace, numa última investida, e crava-lhe, com ira, a peixeira no peito. Beneficiaram
o Inação, doutor.
- O quê, Matias?
- Sim, senhor, caparam o Inação.