DECEPÇÃO. É o que senti quando li três das cinco novelas de Clodoaldo Freitas (Teresina - PI, 1855 – 1924) em boa hora republicadas por Teresinha Queiroz em 2009, via Editora Ética, de Imperatriz, MA. Trata-se de Memórias de um velho (Teresina, Pátria, 1905 – 1906), Coisas da vida (São Luís, Diário do Maranhão, 1908-1909) e Por um sorriso (Teresina, Correio do Piauí, 1921), todas originalmente saídas em jornais, em forma de folhetim, o que até explica, mas não justifica, muitas das suas inconsistências. Ainda bem que existem, ao lado delas, o romance histórico O Bequimão (São Luís, 1908), e uma outra novela, Os bandoleiros (Belém, 1922), que elevam o nível da literatura clodoaldina.
O primeiro problema que se revela é que essas três primeiras narrativas citadas são manifestações de um romantismo não só retardatário (basta lembrar que Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, que sepultou de vez a prosa romântica, é de 1881!), mas também, e principalmente, diluidor, porquanto piegas, meloso e superficial. Nelas, há de muito bom as descrições precisas (“O Igarapé-Açu, pequena vila sossegada e aprazível, está situada à margem da estrada de ferro de Bragança, a 116 km de Belém. Seu clima...”) e a concisão dos diálogos, ágeis e funcionais, denunciando a vocação do autor para a contística. Perde-se, porém, muito da boa idealização do amor romântico pelo excesso de amores à primeira vista, que ultrapassam os limites da verossimilhança, que aliás resta fulminada de vez, em narrativas não pertencentes ao gênero fantástico, pela sucessão de eventos os mais disparatados (inúmeros e incríveis casamentos, incontáveis e providenciais viuvezes, rapidíssimas riquezas e empobrecimentos, etc), a não ser que, para redimi-los, os enquadremos como “causos” ou “lorotas”.
Clodoaldo Freitas escreve bem (apesar de prejudicado pela revisão, que não atentou devidamente para a boa virgulação que os textos mereciam), mas erigiu três novelas inconsistentes, que não podiam mesmo deixar entre nós uma tradição de prosa digna de continuidade e que sublinham ainda mais o valor literário de Um manicaca, de Abdias Neves (Teresina, 1909). Esse romance naturalista, apesar dos seus defeitos, como as longas digressões anticlericais, cada vez mais se afirma como a primeira narrativa piauiense de qualidade, o que se torna mais óbvio se a compararmos à novelística clodoaldina, cuja única novidade é um romantismo temporão entremeado, aqui e ali, por um discurso anticlerical em voga na época, embora mais contido que o de Abdias.
Sei que o homem é o homem e suas circunstâncias. Isso, entretanto, não vale para justificar a prática, já no começo do século 20, de um folhetinesco romantismo quando a luz do melhor romantismo brasileiro há muito se apagara (é como, na música, querer ser “jovem guarda” em 2010!). É claro que se pode sempre dizer, como faz Teresinha Queiroz na quarta capa de Memórias de um velho, que Clodoaldo Freitas “trata os caminhos e descaminhos do amor e da vida como metáforas da política brasileira e de seus sonhos de transformação social”, metáforas difíceis de serem comprovadas, amiudadamente, nos próprios textos. Outra saída para a elevação artificial do valor literário dessas três novelas clodoaldinas seria interpretá-las como paródias do mais desbragado romantismo, o que também exige pormenorizada, e igualmente complicada, comprovação textual.
Há, no entanto, um Clodoaldo Freitas bem melhor em O Bequimão (São Luís, 1908), romance histórico de tessitura mais complexa, passado em São Luís, no Maranhão, no século XVII, e em Os bandoleiros (1922), novela ambientada numa cidadezinha perdida na Amazônia (Igarapé-Açu – PA) cujos costumes e política são sintética e interessantemente documentados. Talvez haja também um Clodoaldo Freitas mais consistente e literariamente mais contributivo na seara do conto de matiz naturalista, que desconfio ter sido, o conto, sua verdadeira vocação literária. Veremos isso em outro artigo, que a este damos por findo, afirmando que amar de verdade uma literatura não é louvar, a qualquer custo, tudo o que a ela pertença, mas dar às produções do seu acervo uma real dimensão, sem puxar o elástico para além da sua capacidade de resistência, o que redundaria num acrítico bairrismo mistificador.
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* Airton Sampaio é escritor e professor de língua portuguesa e literatura brasileira no Departamento de Letras da UFPI.
Fonte: Diário do Povo do Piauí, Opinião, 15 jan 2011, p. 2.
Airton Sampaio, meu caro, com este ensaio crítico você acaba definitivamente contribuindo para ir desmistificando os exercícios literários de piauienses do passado e que alguns pesquisadores querem transformá-los em modernistas goela abaixo. É tese já configurada de que a literatura feita por piauienses no início do século XX é fora de contexto de época. Sempre vimos estes autores elaborando suas produções utilizando concepções estéticas românticas(prosa) e árcades/parnasianas/simbolistas(poesia). Estes prosadores e poetas reafirmam projetos estéticos fundados no passado e sem o olhar no futuro como fizeram alguns pré-modernistas. Parabéns pela clareza posta neste texto. Abs. Emerson
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