Ernesto foi aos poucos abrindo os olhos. O quarto estava em completa escuridão, sob um escoar inflexível, compassado e certo. Certo, tão certo que não era preciso ter ouvidos para ouvir, bastava-lhe o cheiro batido e penetrante. O clarão de um relâmpago veio confirmar a água copiosa que escorria pelos vidros da janela.
— Chuva!
A voz saiu-lhe instintiva, quebrando aquele alheamento. Levantou-se da rede, sentou-se na velha cômoda, junto à janela, e a face ainda quente ficou ali, unida à vidraça que recebia de fora o inesperado banho.
A voz saiu-lhe instintiva, quebrando aquele alheamento. Levantou-se da rede, sentou-se na velha cômoda, junto à janela, e a face ainda quente ficou ali, unida à vidraça que recebia de fora o inesperado banho.
— Chuva!
Uma luz brilhava no quarto contíguo.
— Clara, está chovendo!
— Chovendo?
— Chuva, sim, está chovendo.
— Chovendo?
— Chuva, sim, está chovendo.
Ouviam-se passos, sombras partiam da varanda iluminada e se iam projetar nas lajes do saguão. As vozes eram então mais distantes.
— Uma goteira no meio da casa.
— Vê como a toalha está se molhando, até parece um ralo esse telhado.
— São os meninos da rua, o dia inteiro a desenganchar bolas.
— Taz uma vasilha, pelo menos vai aparando a água.
— Hoje suportaria uma goteira em cima de minha rede, ah, Clara!
— Chuva!
— Chuva de dezembro, bom inverno virá.
— Deus queira.
— Será que Ernesto não acordou?
— Vou acordá-lo.
— Não. Amanhã o dia é pouco para correr pelo campo e andar com os pés na água.
— Meia noite, 20 de dezembro.
— Somos felizes, Clara, nosso amor vai durar para sempre.
— Sempre, assim seja, está tão contente.
— E não está, você?
— Com a chuva?
— Sim.
— Estou.
— Minha mulher.
— Você não vai comer alguma coisa?
— Clara, Ernesto já tem onze anos.
— Precisamos interná-lo.
— Amanhã cuidarei do enxoval de meu filho.
— Ficaremos só com a Edi.
— É.
— Clara, precisamos ter outro filho.
— Vê como a toalha está se molhando, até parece um ralo esse telhado.
— São os meninos da rua, o dia inteiro a desenganchar bolas.
— Taz uma vasilha, pelo menos vai aparando a água.
— Hoje suportaria uma goteira em cima de minha rede, ah, Clara!
— Chuva!
— Chuva de dezembro, bom inverno virá.
— Deus queira.
— Será que Ernesto não acordou?
— Vou acordá-lo.
— Não. Amanhã o dia é pouco para correr pelo campo e andar com os pés na água.
— Meia noite, 20 de dezembro.
— Somos felizes, Clara, nosso amor vai durar para sempre.
— Sempre, assim seja, está tão contente.
— E não está, você?
— Com a chuva?
— Sim.
— Estou.
— Minha mulher.
— Você não vai comer alguma coisa?
— Clara, Ernesto já tem onze anos.
— Precisamos interná-lo.
— Amanhã cuidarei do enxoval de meu filho.
— Ficaremos só com a Edi.
— É.
— Clara, precisamos ter outro filho.
Ernesto viu as sombras se alongarem através das venezianas, à proporção em que o quarto, de novo, se iluminava. Depois foi um ranger de balanço e vozes indistintas, novamente sob a escuridão que invadiu a casa.
O escoar era inflexível, uma chuva pesada, mansa, a escorrer no telhado. O rosto de Ernesto continuava unido à janela, ofegante, como se quisesse absorver o banho dos vidros molhados. Fora a preocupação de tantos dias, se bem que não soubesse por que a esperava assim, mas seu pai a esperava e, depois, de que vale o mundo sem a chuva? Espera-se todos os anos pelo inverno que vem de longe, anunciando-se no horizonte, demorando dias em trovões saudosos.
O escoar era inflexível, uma chuva pesada, mansa, a escorrer no telhado. O rosto de Ernesto continuava unido à janela, ofegante, como se quisesse absorver o banho dos vidros molhados. Fora a preocupação de tantos dias, se bem que não soubesse por que a esperava assim, mas seu pai a esperava e, depois, de que vale o mundo sem a chuva? Espera-se todos os anos pelo inverno que vem de longe, anunciando-se no horizonte, demorando dias em trovões saudosos.
— Janeiro, fevereiro, março...
Lembrou-se das doze pedrinhas de sal que arrumou num tabuleiro e expôs ao sereno da noite de Sta. Luzia. A cada uma cabia a responsabilidade de um mês no novo ano, e no entretanto pouca umidade receberam. Como, pois, poderia se alegrar se nenhuma delas se dissolveu, não dando esperanças de inverno? É pensar na experiência e pedir a Deus, olhar os dias, olhar todas as manhãs para o nascente e ver se há nuvens ou se está ventando, se há neblinas na serra ou na terra.
Ernesto, menino que espiava o nascente, a enlanguescer, aguardava a mudança do tempo. Vêm- lhe a propósito a lacraia que ferruou o dedo da irmã; formigas que fizeram caminhos pelas paredes, que se estiravam numa orientação certa; a rã que raspou nas coités muitos dias e cantou nas garrafas; uma esperança em plena noite voando de casa adentro. Ernesto viu enormes caranguejeiras atravessando a estrada, muitas delas já esmagadas sob o peso de rodas. Estranho caso esse das caranguejeiras! Que determinação ou força impelia aqueles repugnantes insetos, de patas peludas e vagarosas, a se arrastarem pela estrada? Ainda ao sol da manhã e já se encontravam aos magotes, invadindo a rodagem, subindo os barrancos, esmagados por pneumáticos. Por que os bichinhos saiam da terra e adivinhavam chuva?
Ernesto descolou a face da vidraça fria, abriu de leve a porta, atravessou o corredor que ligava à varanda. No peitoril da cozinha acendeu uma vela, pôs-se a contemplar o arroz que nascia plantado em latas de manteiga. Esboçou um sorriso, aquelas intermináveis hastezinhas verdes, unidas umas às outras, estavam agora salpicadas de chuva. Aquele arroz que plantou no dia treze, para o Presépio, em tanta impaciência acompanhado na germinação, estava ali, verde e molhado, crescendo de uma maneira espantosa. Arroz que iria enfeitar como moitas de capim fresco e penteado, que sustentaria barrancos de areia e beiras de lagoa, dentro do qual haveria de se esconder a onça que sacode a cabeça; arroz cercando a casa de palha onde o Menino nasceu, rodeando o boi, Nossa Senhora e São José, num cheiro quente de terra e mato. Ernesto contemplou por momentos aquelas plantinhas verdes que se agitavam. Nunca se espera por verdura em dezembro, pois que os campos estão secos, planta-se o arroz em latas, todo o mundo o planta, se faz presépios, se deseja louvar o nascimento de Nosso Senhor.
Os relâmpagos eram espaçados, um surdo rumor de trovão roncava debaixo da terra. Os pingos de chuva borrifavam os cabelos e o rosto de Ernesto, que era presa dessa contemplação. Apagou a luz, alisou mais uma vez as latas dispostas no peitoril. De manhã seriam os preparativos para a casa da avó. Luiz haveria de aparecer com os cavalos para a partida e, de lá, Campo Maior seria apenas uns telhados brancos com duas torres e um catavento em forma de carnaubeira.
— Lindo Menino Jesus Inocente!
Naquele vestido de cetim branco que tão bem lhe assentava, para que o corpinho não sofresse, o ano inteiro, no Oratório, as asperezas das palhas da manjedoura. Os bracinhos abertos a esperar o dia em que a estrela guiou os Magos, o galo anunciou à meia hora e os anjos desceram do céu.
Pudesse colocar, para adorar o Menino, bichos verdadeiros! A cabritinha Canindé, enjeitada e tão mansa, ou qualquer animal vivo? O Presépio no alpendre, ocupando duas mesas com barro molhado, rodeado de galhos de criouli, o corrupião e o beija-flor empalhados, o sagui, as casas, as estradas dos camelos, os pastores, as intãs coloridas que a tia trouxera das praias da Amarração. Anália, sua prima, a passar o ano juntando coisas que servissem para o Presépio, para torná-lo mais atraente e mostrar aos caboclos como fora realmente o lugar e a noite em que nasceu o Cristoem Belém. Que havia morros e pés de serra, lagoas, roceiros que levavam frutas a Nosso Senhor em cumbucas de mel de abelhas. Ernesto lembrava-se daquela gente do campo que presenteava a avó com franguinhos e pimentões vermelhos. Anália contava-lhe a história de Isabel, a mais bela pastora que, não possuindo nada, nem sequer um burreguinho, fora proibida de visitar o Menino, desde que nada tinha para lhe oferecer. Foi quando os irmãos saíram com suas oferendas, Isabel os acompanhou até o campo, e chorou contemplando os pastores que seguiam. Cansada, a menina adormeceu, mas as lágrimas molharam a terra e Isabel, quando despertou, viu, ao seu redor, pendões de açucenas que desabrochavam!
Sim, Ernesto sabia, bastava uma chuva para desabrocharem as cebolas berrantes. Aqueles lírios que rompiam o barro recém-molhado, ainda quente, para rebentarem flores. Dois dias de labor e
germinação, no terceiro a babugem tenra despontaria pelas baixas e tabuleiros, por entre tanajuras e formigas que voavam. E a flor da chuva, ainda morna e apressada, sorria a Isabel...
Ernesto esfregou os olhos insones. Das vidraças vinha um leve clarão anunciando o dia. Já não chovia mais.
Ernesto, menino que espiava o nascente, a enlanguescer, aguardava a mudança do tempo. Vêm- lhe a propósito a lacraia que ferruou o dedo da irmã; formigas que fizeram caminhos pelas paredes, que se estiravam numa orientação certa; a rã que raspou nas coités muitos dias e cantou nas garrafas; uma esperança em plena noite voando de casa adentro. Ernesto viu enormes caranguejeiras atravessando a estrada, muitas delas já esmagadas sob o peso de rodas. Estranho caso esse das caranguejeiras! Que determinação ou força impelia aqueles repugnantes insetos, de patas peludas e vagarosas, a se arrastarem pela estrada? Ainda ao sol da manhã e já se encontravam aos magotes, invadindo a rodagem, subindo os barrancos, esmagados por pneumáticos. Por que os bichinhos saiam da terra e adivinhavam chuva?
Ernesto descolou a face da vidraça fria, abriu de leve a porta, atravessou o corredor que ligava à varanda. No peitoril da cozinha acendeu uma vela, pôs-se a contemplar o arroz que nascia plantado em latas de manteiga. Esboçou um sorriso, aquelas intermináveis hastezinhas verdes, unidas umas às outras, estavam agora salpicadas de chuva. Aquele arroz que plantou no dia treze, para o Presépio, em tanta impaciência acompanhado na germinação, estava ali, verde e molhado, crescendo de uma maneira espantosa. Arroz que iria enfeitar como moitas de capim fresco e penteado, que sustentaria barrancos de areia e beiras de lagoa, dentro do qual haveria de se esconder a onça que sacode a cabeça; arroz cercando a casa de palha onde o Menino nasceu, rodeando o boi, Nossa Senhora e São José, num cheiro quente de terra e mato. Ernesto contemplou por momentos aquelas plantinhas verdes que se agitavam. Nunca se espera por verdura em dezembro, pois que os campos estão secos, planta-se o arroz em latas, todo o mundo o planta, se faz presépios, se deseja louvar o nascimento de Nosso Senhor.
Os relâmpagos eram espaçados, um surdo rumor de trovão roncava debaixo da terra. Os pingos de chuva borrifavam os cabelos e o rosto de Ernesto, que era presa dessa contemplação. Apagou a luz, alisou mais uma vez as latas dispostas no peitoril. De manhã seriam os preparativos para a casa da avó. Luiz haveria de aparecer com os cavalos para a partida e, de lá, Campo Maior seria apenas uns telhados brancos com duas torres e um catavento em forma de carnaubeira.
— Lindo Menino Jesus Inocente!
Naquele vestido de cetim branco que tão bem lhe assentava, para que o corpinho não sofresse, o ano inteiro, no Oratório, as asperezas das palhas da manjedoura. Os bracinhos abertos a esperar o dia em que a estrela guiou os Magos, o galo anunciou à meia hora e os anjos desceram do céu.
Pudesse colocar, para adorar o Menino, bichos verdadeiros! A cabritinha Canindé, enjeitada e tão mansa, ou qualquer animal vivo? O Presépio no alpendre, ocupando duas mesas com barro molhado, rodeado de galhos de criouli, o corrupião e o beija-flor empalhados, o sagui, as casas, as estradas dos camelos, os pastores, as intãs coloridas que a tia trouxera das praias da Amarração. Anália, sua prima, a passar o ano juntando coisas que servissem para o Presépio, para torná-lo mais atraente e mostrar aos caboclos como fora realmente o lugar e a noite em que nasceu o Cristo
Sim, Ernesto sabia, bastava uma chuva para desabrocharem as cebolas berrantes. Aqueles lírios que rompiam o barro recém-molhado, ainda quente, para rebentar
germinação, no terceiro a babugem tenra despontaria pelas baixas e tabuleiros, por entre tanajuras e formigas que voavam. E a flor da chuva, ainda morna e apressada, sorria a Isabel...
Ernesto esfregou os olhos insones. Das vidraças vinha um leve clarão anunciando o dia. Já não chovia mais.
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