Carla Adriana de Sousa Barbosa**
Layla Aristiany Nunes Maia
Raimundo Silva do Nascimento
Na literatura, a linguagem sempre foi elemento determinante da caracterização de uma época, região, estilo e personagens. No conto Ataliba, o vaqueiro, de Francisco Gil Castello Branco, cuja temática é a seca no interior do Piauí, há, nem sempre distintas, a linguagem do narrador e a das personagens.
Na fala do narrador, percebem-se traços tendentes ao registro da cultura, léxico e sintaxe lusitanos, senão europeia, com a utilização de termos do vocabulário do próprio autor. Na fala das personagens há, por sua vez, uma tentativa de registro da oralidade e dos costumes empregados na época e região, enriquecida com o uso, muito frequente, de onomatopeias.
O autor, como já dito, estabelece uma confusão entre sua fala e a do narrador. Essa afirmação é comprovada, por exemplo, pela fala de Deodata, transpassada pela influência lusitana por ele sofrida, o que se nota nos diálogos com Teresinha, em que há uma aplicação da norma culta na construção frasal. Deodata é uma senhora idosa, sem escolaridade e residente no interior da província do Piauí, não sendo a colocação pronominal enclítica e o uso do verbo na segunda pessoa do singular usuais do povo daquela região e nível social.
“- Cala-te tola! Gritando, interrompeu Deodata (...)” (p. 78)
“- Então, rapariga, que esperas? Estás cochilando? Tens medo de ir à cozinha? (...)” (p. 83)
Ademais, no decorrer do texto, ocorrem, na fala do narrador, comparações baseadas mais no universo da cultura europeia que no da sertaneja do longínquo Piauí. Vejam-se as feitas com um costume francês, um ponto turístico italiano e um instrumento musical do folclore e dança espanholas:
“Depois arranjou a rodilha na cabeça como um coque parisiense (...)” (p. 45)
“Os cabelos... em cocoruto... inclinados qual outra torre de Piza (...)” (p. 47)
“(...) com um estrepitoso alarido, batendo castanholas com o dedo, sapateando ao redor do africano (...)” (p. 53)
Também, porque idealizado, o narrador apresenta um perfil do sertanejo bem diferente da realidade, numa espécie de “romantização” dessa figura, o que denuncia o forte romantismo de Ataliba, o vaqueiro:
“Ataliba era moço, tinha a figura atlética e a fisionomia cheia de franqueza. O seu trajar caprichoso indicava desde logo que ele era vaqueiro e enamorado.” (p. 43)
“Teresinha era uma morena sedutora. As suas formas, delineando-se em modesta saia de chita e os seios arfando sob alva camisa orlada (...). As tranças espessas, escuras e lustrosas como fios negros de seda (...)”. (p. 41)
Ainda é pertinente observar que Francisco Gil utilizou-se de estratégias como o lirismo, quer na comparação das sertanejas com as flores, quer no descrever o apego à terra, quer no dizer da falta de chuva:
“As filhas do sertão são como flores campesinas, a arte não lhes realça o valor (...).” (p. 41)
“Eram os últimos agregados da fazenda (...). A execução desse ato era para essa pobre gente um poema de heroísmo, em cada árvore, em cada pedra, em cada recanto dessas campinas desoladas deixavam uma reminiscência, uma saudade, um companheiro de infância – um pedaço d’alma!” (p. 71)
“Na alegria ou na dor dava curso aos seus sentimentos, traduzindo-os em versículos (...). Assim, de repente desabafou um largo suspiro dos pulmões e soltou a voz.” (p. 73)
Muitas vezes, são as onomatopeias e as cantigas que revelam um pouco do linguajar do narrador/autor, conferindo musicalidade ao conto:
“– Té! té! té! té!...”
“- Gru gru gru gru! Gru gru gru gru!”
“– Coré!... Coré!... Coré!...” (p. 59)
“(...) marchando ramram dos pandeiros, ao tilintar das violas (...)” (p. 62)
“A flor do – piqui – é branca,
do – bacuri – encarnada,
a flor do jambo é bonita,
mais bonita é minha amada” (p. 63).
Não se pode perder de vista que o que se quer averiguar aqui é, principalmente, de que forma o narrador se identifica no texto como o próprio Francisco Gil. No caso, o autor esconde-se atrás do narrador e, encoberto por este, fala. Ou seja, escondido sob o véu do narrador e das demais personagens, o autor de Ataliba, o vaqueiro pôde proferir o seu discurso romantizado, disso, porém, se esquecendo, por incontáveis vezes.
Assim, na tentativa de constituição de uma identidade regional por meio de um discurso característico do sertanejo, a voz do narrador confunde-se, não raro, com o pensamento e linguagem do autor, um intelectual da época e diplomata de carreira, indicando influências da formação acadêmica e da convivência dele com a cultura europeia. Até mesmo pela falta de convivência direta com a realidade linguística do Piauí, faltou coerência entre as falas próprias do autor e as das personagens, estas bastantes irreais, o que se justifica, talvez, pela distância geográfica e temporal entre Francisco Gil e sua Província natal. O autor imprime, pois, ao discurso do narrador, sua linguagem lusitana e sua visão de mundo eurocêntrica, e isso é, evidentemente, uma falha de construção literária.
Bibliografia
CASTELLO BRANCO, Francisco Gil. Ataliba, o vaqueiro, Hermione e Abelardo, A Mulher de Ouro. 2. ed. Teresina: APL/UFPI, 1994.
MOURA, Francisco Miguel de. Literatura do Piauí. Teresina: APL/BNB, 2001.
TERRA, Ernani. Linguagem, língua e fala. São Paulo: Scipione, 1997.
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*Artigo produzido na disciplina Literatura Nacional: autores piauienses, ministrada na Ufpi, em 2011/1, pelo prof. Airton Sampaio.
**Estudantes de Letras na Ufpi.
Um comentário:
Eu não diria uma falha de construção literária individual, mas uma opção do próprio estilo literário de época que fundamenta a obra como um todo, ou seja, o Romantismo em algumas construções prosaicas de temática regionalista ou não ainda mantém, no Brasil, o ranço da sintaxe lusitana quebrada um século depois pelos Modernistas. Não há falha de estilo individual na montagem da linguagem de Ataliba, o Vaqueiro de Gil Castelo Branco mesmo porque o estilo da época favorecia estas opções de falas inverossímeis. Basta ver em obras de outros autores a época. De qualquer maneira valeu pela colocação das alunas.
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