sábado, 31 de dezembro de 2011

!PRÊMIO POLEGAR PRA CIMA 2011!

... E o Prêmio  de 2011 vai para...

... o blog A Musa Esquecida (http://www.amusaesquecida.com), idealizado e organizado por Rodrigo Leite, com os votos de que em 2012 mantenha a proposta e, principalmente, a qualidade do trabalho! Uma cajuína bem gelada para o Rodrigo!!! 

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

PRÊMIO POLEGAR PRA BAIXO 2011

... O Prêmiode 2011 vai para...


... o El Pano do El Mano, os Fantasmões de Natal! Então, limão azedo nos olhos do Pré-feito de Teresina!!!  

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

CONTOZINHO DE NATAL, de M. Moura Filho

A menina, sentada em seu regaço, foi ao solo.  O corpo, depois de arremessado para trás, imóvel. Um vermelho mais intenso do que o de sua roupa escorria, ainda aos borbotões, de seu peito.  A barba e os cabelos brancos e longos desprenderam-se dobom velhinho, e a menina, ainda no piso, descobriu que Papai Noel não existia.


Fonte: http://confrariatarantula.blogspot.com/2011/12/contozinho-de-natal.html

sábado, 24 de dezembro de 2011

CONTO DE NATAL, de Francisco Pereira da Silva

Ernesto foi aos poucos abrindo os olhos. O quarto estava em completa escuridão, sob um escoar inflexível, compassado e certo. Certo, tão certo que não era preciso ter ouvidos para ouvir, bastava-lhe o cheiro batido e penetrante. O clarão de um relâmpago veio confirmar a água copiosa que escorria pelos vidros da janela. 
— Chuva!

A voz saiu-lhe instintiva, quebrando aquele alheamento. Levantou-se da rede, sentou-se na velha cômoda, junto à janela, e a face ainda quente ficou ali, unida à vidraça que recebia de fora o inesperado banho. 
— Chuva! 
Uma luz brilhava no quarto contíguo. 
— Clara, está chovendo!
— Chovendo?
— Chuva, sim, está chovendo.
Ouviam-se passos, sombras partiam da varanda iluminada e se iam projetar nas lajes do saguão. As vozes eram então mais distantes.
— Uma goteira no meio da casa.
— Vê como a toalha está se molhando, até parece um ralo esse telhado.
— São os meninos da rua, o dia inteiro a desenganchar bolas. 
— Taz uma vasilha, pelo menos vai aparando a água.
— Hoje suportaria uma goteira em cima de minha rede, ah, Clara!
— Chuva!
— Chuva de dezembro, bom inverno virá.
— Deus queira.
— Será que Ernesto não acordou?
— Vou acordá-lo.
— Não. Amanhã o dia é pouco para correr pelo campo e andar com os pés na água.
— Meia noite, 20 de dezembro.
— Somos felizes, Clara, nosso amor vai durar para sempre.
— Sempre, assim seja, está tão contente.
— E não está, você?
— Com a chuva?
— Sim.
— Estou.
— Minha mulher.
— Você não vai comer alguma coisa?
— Clara, Ernesto já tem onze anos.
— Precisamos interná-lo.
— Amanhã cuidarei do enxoval de meu filho.
— Ficaremos só com a Edi.
— É.
— Clara, precisamos ter outro filho.
Ernesto viu as sombras se alongarem através das venezianas, à proporção em que o quarto, de novo, se iluminava. Depois foi um ranger de balanço e vozes indistintas, novamente sob a escuridão que invadiu a casa.

O escoar era inflexível, uma chuva pesada, mansa, a escorrer no telhado. O rosto de Ernesto continuava unido à janela, ofegante, como se quisesse absorver o banho dos vidros molhados. Fora a preocupação de tantos dias, se bem que não soubesse por que a esperava assim, mas seu pai a esperava e, depois, de que vale o mundo sem a chuva? Espera-se todos os anos pelo inverno que vem de longe, anunciando-se no horizonte, demorando dias em trovões saudosos.
—  Janeiro, fevereiro, março...
Lembrou-se das doze pedrinhas de sal que arrumou num tabuleiro e expôs ao sereno da noite de Sta. Luzia. A cada uma cabia a responsabilidade de um mês no novo ano, e no entretanto pouca umidade receberam. Como, pois, poderia se alegrar se nenhuma delas se dissolveu, não dando esperanças de inverno? É pensar na experiência e pedir a Deus, olhar os dias, olhar todas as manhãs para o nascente e ver se há nuvens ou se está ventando, se há neblinas na serra ou na terra.

Ernesto, menino que espiava o nascente, a enlanguescer, aguardava a mudança do tempo. Vêm- lhe a propósito a lacraia que ferruou o dedo da irmã; formigas que fizeram caminhos pelas paredes, que se estiravam numa orientação certa; a rã que raspou nas coités muitos dias e cantou nas garrafas; uma esperança em plena noite voando de casa adentro. Ernesto viu enormes caranguejeiras atravessando a estrada, muitas delas já esmagadas sob o peso de rodas. Estranho caso esse das caranguejeiras! Que determinação ou força impelia aqueles repugnantes insetos, de patas peludas e vagarosas, a se arrastarem pela estrada? Ainda ao sol da manhã e já se encontravam aos magotes, invadindo a rodagem, subindo os barrancos, esmagados por pneumáticos. Por que os bichinhos saiam da terra e adivinhavam chuva?

Ernesto descolou a face da vidraça fria, abriu de leve a porta, atravessou o corredor que ligava à varanda. No peitoril da cozinha acendeu uma vela, pôs-se a contemplar o arroz que nascia plantado em latas de manteiga. Esboçou um sorriso, aquelas intermináveis hastezinhas verdes, unidas umas às outras, estavam agora salpicadas de chuva. Aquele arroz que plantou no dia treze, para o Presépio, em tanta impaciência acompanhado na germinação, estava ali, verde e molhado, crescendo de uma maneira espantosa. Arroz que iria enfeitar como moitas de capim fresco e penteado, que sustentaria barrancos de areia e beiras de lagoa, dentro do qual haveria de se esconder a onça que sacode a cabeça; arroz cercando a casa de palha onde o Menino nasceu, rodeando o boi, Nossa Senhora e São José, num cheiro quente de terra e mato. Ernesto contemplou por momentos aquelas plantinhas verdes que se agitavam. Nunca se espera por verdura em dezembro, pois que os campos estão secos, planta-se o arroz em latas, todo o mundo o planta, se faz presépios, se deseja louvar o nascimento de Nosso Senhor.

Os relâmpagos eram espaçados, um surdo rumor de trovão roncava debaixo da terra. Os pingos de chuva borrifavam os cabelos e o rosto de Ernesto, que era presa dessa contemplação. Apagou a luz, alisou mais uma vez as latas dispostas no peitoril. De manhã seriam os preparativos para a casa da avó. Luiz haveria de aparecer com os cavalos para a partida e, de lá, Campo Maior seria apenas uns telhados brancos com duas torres e um catavento em forma de carnaubeira.

— Lindo Menino Jesus Inocente!

Naquele vestido de cetim branco que tão bem lhe assentava, para que o corpinho não sofresse, o ano inteiro, no Oratório, as asperezas das palhas da manjedoura. Os bracinhos abertos a esperar o dia em que a estrela guiou os Magos, o galo anunciou à meia hora e os anjos desceram do céu.

Pudesse colocar, para adorar o Menino, bichos verdadeiros! A cabritinha Canindé, enjeitada e tão mansa, ou qualquer animal vivo? O Presépio no alpendre, ocupando duas mesas com barro molhado, rodeado de galhos de criouli, o corrupião e o beija-flor empalhados, o sagui, as casas, as estradas dos camelos, os pastores, as intãs coloridas que a tia trouxera das praias da Amarração. Anália, sua prima, a passar o ano juntando coisas que servissem para o Presépio, para torná-lo mais atraente e mostrar aos caboclos como fora realmente o lugar e a noite em que nasceu o Cristo em Belém. Que havia morros e pés de serra, lagoas, roceiros que levavam frutas a Nosso Senhor em cumbucas de mel de abelhas. Ernesto lembrava-se daquela gente do campo que presenteava a avó com franguinhos e pimentões vermelhos. Anália contava-lhe a história de Isabel, a mais bela pastora que, não possuindo nada, nem sequer um burreguinho, fora proibida de visitar o Menino, desde que nada tinha para lhe oferecer. Foi quando os irmãos saíram com suas oferendas, Isabel os acompanhou até o campo, e chorou contemplando os pastores que seguiam. Cansada, a menina adormeceu, mas as lágrimas molharam a terra e Isabel, quando despertou, viu, ao seu redor, pendões de açucenas que desabrochavam!

Sim, Ernesto sabia, bastava uma chuva para desabrocharem as cebolas berrantes. Aqueles lírios que rompiam o barro recém-molhado, ainda quente, para rebentar em flores. Dois dias de labor e
germinação, no terceiro a babugem tenra despontaria pelas baixas e tabuleiros, por entre tanajuras e formigas que voavam. E a flor da chuva, ainda morna e apressada, sorria a Isabel...

Ernesto esfregou os olhos insones. Das vidraças vinha um leve clarão anunciando o dia. Já não chovia mais.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

CONTO DES-HOMENAGEM!

Na próxima postagem, haverá neste blog um Conto que, por desmascarar o Rubro sobre o Verde de Therezina, Theresina e Teresina, presta-lhe uma verdadeira, e fundamental, des-homenagem! Afinal, não cantes tua cidade, deixe-a em paz, não aconselhava Drummond? Rubro sobre o Verde!  

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

46

Quando Ismália Palácio das Dores batizaram,
Hitler invade a Polônia.

Quando, já no Colégio das Irmãs, ouve o badalar repentino dos sinos da São Benedito
não sabe como sabia que casas se estavam queimando na cidade como
se Therezina a Roma de Nero, diz irmã Natália.

Quando Ismália sangrou, e espantou-se,
Ghiggia, Schiaffino e Obdúlio Varela lacrimejam os olhos do Brasil.

Quando ela, também primeira vez, enamora-se,
e ouve afaste-se desse sujeitinho sem eira nem beira, 
Getúlio matara Vargas.  

Quando nas aulas de português descochilou
é que Irmã Natália fala coisas como a vida é solecismo, na verdade é um anacoluto, a vida.

Quando a casam, e então Ismália Palácio das Dores Guimarães,
os russos arremessam o Sputnik.

Quando a filha veio, e sentiu, em igual dose, euforia e remorso,
Garrincha macunaíma na Suécia.

Quando, falecidos os pais, ela divorcia, e então Ismália Palácio das Dores,
jamais esqueceu que de um rádio vinha Peguei o trem em Teresina
Pra São Luís do Maranhão
Atravessei o Parnaíba
Ai, ai, que dor no coração...

Quando, noite já um tanto desestrelada, nela cessou de vez o antipático sangue, 
O povo marcha Um,
dois, três, quatro, cinco mil,
queremos eleger o presidente do Brasil!

Quando Odara, do Natal na véspera, o tamborete sob os pés chuta, e língua de fora fica, e roxo o rosto rui, então Ismália Palácio das Dore
Ismália Palácio das Dor
Ismália Palácio das Do
Ismália Palácio das
Ismália Palácio da
Ismália Palácio d
Ismália Palácio
Ismália Paláci
Ismália Palác
Ismália Palá
Ismália Pal
Ismália Pa
Ismália P
Ismália
Ismáli
Ismá
Ism
Is
I


quarta-feira, 19 de outubro de 2011

AULA MAGNA

Boa noite!

Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis.

Boa noite!

domingo, 9 de outubro de 2011

EPITÁFIO

Três maçãs mudaram o mundo: a de Eva, a de Isaac Newton e a de

 STEVE JOBS!!!

foto extraída de http://mourafil.blogspot.com

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

A PÉROLA NO LODO*, romance humorístico de Francisco Gil Castelo Branco**, 1874!

... Continuação [do número 4]

CAPÍTULO IV***

A humanidade é fraca e essa fraqueza se revela sobretudo em suas aspirações, frocos balsâmicos de fumaça que se elevam para regiões fantásticas, em cujo horizonte a felicidade se suspende, atraindo-a com força magnética!

O comando e seus espinhos; a fortuna e suas incoerências; o saber e suas locubrações, eis seus principais meios de sedução, sedução irresistível, deslumbrante, mesmo necessária, sobre a qual nos arrojamos delirantes, nós, insensatas mariposas! Ligeiras gotas de orvalho abandonando a terra, nós abandonamos o ponto de partida. cheios de esperança, e quando julgamos atingir a raia de peregrinação, a encontramos confundindo-se com ele, formando dois mistérios terriveis que sustêm as alças de um túmulo branco com a negra inscrição do monge gravada sobre as portas de Roma: “Umbra et nihil!” [“Sombras e Nada!”], tendo em remuneração de tantas fadigas sete palmos de lama para o nosso repouso eterno!

São essas as minhas crenças, disse o Dr. Ferraz, entornando de um fôlego um copo de champanha, acrescentando:

— Nasce o império, da escravidão; a riqueza, da miséria; a ilustração, da ignorância; a beleza, da fealdade; a cor branca, da cor preta; a luz, das trevas; e, separando-se o efeito da causa, o que seriam dessas quimeras que louvamos tanto?

Quando o desengano, oceano furioso, sobre elas precipita suas ondas, envolvendo-as em seu fluxo e refluxo, um grito uníssono, pertencente a todas as classes, não troa além este eco duvidoso: “Onde está a felicidade?!” Ah! se pudéssemos ler sobre as frontes o que se traz no coração quantas pessoas invejáveis não seriam dignas de lástima! Creio, meus amigos, que assim exclamara Dante, o poeta que tanto sentira.

Se nao é ficção o espiritualismo, se é possivel a imortalidade da alma, se crêssemos, como as beatas, nos passeios noturnos dos habitantes de além-túmulo, quais as exprobações que para nós teriam os espectros de nossos avós, surgindo de sob esta mesa; eles que consideravam o homem mais venerável da aldeia aquele que tinha a noite mais serena; eles que consideravam o sono como sendo o mais precioso de todos os tesouros, e que se revestiam de toda a gravidade, cem vezes por dia, proferindo a seus vizinhos este cumprimento patriarcal: “Como. passou a noite?”

Se dirigíssemos a Espiridião esta mesma pergunta, qual seria a sua resposta, se o amor próprio lhe concedesse franqueza? Ele diria, certamente, que um condenado, percorrendo com passos vacilantes os ladrilhos de sua masmorra, contando os poucos momentos que lhe restam de vida à espera do patíbulo, se porventura há vida nesses momentos, não sofre mais do que ele sofrera depois de sua malograda esperança de convencer Mlle. Celline.

Percorrendo o seu aposento como o 1eão ferido no flanco, na jaula estreita; parando de quando em quando defronte do grande espelho do seu guarda-roupa, ele parecia surpreso, não vendo ali no vidro o seu retrato reproduzido com cabelos brancos sobre um corpo raquítico; mas, se na verdade um fraco calor lhe cobria as faces, o abdõmen, o abdôrnen desproporcionado, o abdômen que ele outrora tanto afagava não diminuíra uma só linha em sua monstruosidade, o que lhe fazia recuar de horror, tapando o rosto com as mãos comose fossem elas espesso véu, e perante essa catástrofe deferia em ai! dolente às palavras de Mlle Celline: “Emagrecei primeiramente!”, prosseguindo com seu passeio desabrido em volta do seu salão. “Como passara a noite, Mlle. Celline?”

A bela parisiense subira mansamente as escadas de cinco andares, e lá bem longe, mais próxima do céu do que da terra, abrira sem barulho uma porta e penetrara em um quarto de “mansarda”, onde tudo se revestia desse ar sombrio da pobreza.

Nas paredes, forradas de um papel sujo, talvez a primeira prova que saíra das oficinas do inventor dessa manufatura em 1761, pendia um quadro pequeno representando a Virgem, já tão denegrido e tão alterado pelas linhas que de ordinário traça a umidade que só a devoção, e uma devoção sincera, se curvaria diante dessa imagem, cujo aspecto seria para um espírito “profano” o da Vênus dos Hotentotes em grande gala!

Oh! Doce conforto da religião, preceitos sublimes de almas puras, por que te apartastes de mim? Por que não me prestais mais aquela linguagem misteriosa que encontrava na minha meninice, ao declinar do sol? Por que já não sei crer, como Mlle. Celline, às sombras daquele quadro?

Aos frouxos reflexos de uma candeia, com os vastos cabelos flutuando sobre as espáduas de nácar, com as mãos postas e os olhos úmidos e fixos sobre aquele quadro, ela rezava sempre muito, antes de embrulhar-se nas rotas cobertas de sua mísera cama; e então, como diz Homero: Ela não se assemelhava à filha de um mortal, mas de um deus! No entanto, contígua à sua cama, em uma outra quase tão mesquinha, apesar dos adornos que seus desvelos encontraram para ali, repousava um velho inválido. Era seu pai.

Certa de que ele estava em paz, o que respeitamos por enquanto, Mlle. Celline, depois de haver orado, quis em vão cerrar as pálpebras, que o pensamento sustinha abertas, pesando os acontecimentos do dia.

O “Petit-Sponser” sobretudo a tinha em xeque-mate. Ela meditava seriamente sobre a paixão de Espiridião. Ela a teria compreendido ou guardava a sua recordação como a lembrança de um episódio alegre, colocando-a na lista em que são inscritas as declarações insípidas que caem do céu das bocas sobre as línguas de víboras de pelintras enfadonhos?

Na atitude respeitosa, quase infantil; na voz trêmula e duvidosa, na constância varonil de Espiridião, ela sondava mais do que um brinco, mais do que um capricho brutal, mais do que uma audácia de mocidade, e quase tinha remorsos de haver zombado daquele homem bem trajado que, talvez em posição de amarrotar sedas finas, as desprezava pelos seus andrajos; e atencioso, humilde em sua presença, reparava na sua formosura, apesar de sua pobreza.

Eis o que Mlle. Celline confidenciava com o seu travesseiro, se mais não ousamos dizer.

Quanto a Mr. Gilliard, acordara bradando socorro contra o “salteador espanhol”, e tivera pesadelos que o próprio Shakespeare nunca chegaria a esboçar.

Mlle. Alvina acendera com a carta de Taquin uma fogueira em seu juízo e adormecera ao fim, guardando-a entre as mãos, como se fosse um manual, invocando o auxílio dos profetas para essa interpretação difícil, mais difícil do que a das “espigas” de Faraó!

Mr. Baudart, que dera excelente trato ao seu malfadado estômago, roncava com os ouvidos sobre as três moedas de ouro, ouvindo em sonho uma marcha triunfal, executada por uma orquestra celeste, e milhares de vozes sonoras proclamando-o rei do Peru!

Taquin, que morava ao lado de Espiridião, notando a sua inquietação, não se incomodara a princípio, pensando, talvez com bom fundamento, que a brisa fresca da noite e a fadiga o demandassem sem demora; porém, desenganado ao fim, irritado pelas contínuas estocadas que os vizinhos com cabos de vassouras, ou instrumentos aparentados, despachavam contra o seu assoalho, por engano, e contra o de Espiridião, impondo-lhe silêncio, resolvera calçar as chinelas, vestir o chambre, concertar a carapuça e sossegar o seu amigo que, sem rebuços, agradeceu sua visita com uma narração minuciosa dos acontecimentos. Taquin, que tragava ainda um pouco de mau humor , o consumia todavia em prenhe risada, em consequência da entoação lastimosa e remate pitoresco com que Espiridião coseu a sua aventura, repetindo a exigência que lhe impusera a parisiense: “Emagrecei primeiramente!”.

O caráter humano tem ora a imobilidade do mar em calmaria, ora a impetuosidade das tormentas. Às vezes, ostenta a placidez da alva em primavera, e com varinha magnética, como a de Moisés ferindo a catadupa que lhe jorra água cristalina em deserto árido, ele fere o seio o mais empedernido deste século de cobiça ardente, donde se lhe esguicha fluido bénovolo de inapreciável simpatia.

Ora, morno como a tarde ao descambar do sol, ele abafa em atmosfera aflitiva tudo quanto se lhe comunica; ora arrogante, qual tufão desenraizando carvalhos seculares e dobrando juncos flexíveis, alastrando além, em seu curso desabrido, a desolação e ruína, ele verga uns, abate outros, e vence a si próprio, se uma barreira mais sólida não retém seus ímpetos. É a crise frenética da cólera, crise que se manifesta por modos variadíssimos e tão comuns que pouca atenção lhe consagramos. Os estribuchos da criança cabeçuda, os ataques nervosos e faniquitos das moças, as enxaquecas das velhas, a rabugem das vovós, as pipocadas do mata-mouros são letras símplices do seu complicado programa.

Enfim, para ferrarmos a argolinha, retenhamos as divagações, e tornemos a Espiridião e Taquin.

Os remoques do sábio embuçaram o nariz de Espiridião como pitada infernal e torturavam-lhe as entranhas como uma bomba arrombando um paiol de fragata; mas ao estampido do canhão precede a faísca da espoleta; ao bramir do trovão precede a luz do relâmpago. Reparando na lividez de Espiridião, que sufocava de raiva, Taquin, quase temendo as consequencias deste acidente, incontinenti corrigira a sua imprudência, purificando-a por esta fórmula: “É bem simples, caro amigo, o que exige Mlle. Cellina. Ah! se outra dificuldade não retalhasse meu coração, quando... Águas passadas não movem moinhos”.

Nao é difíci1 emagrecer-se ou vice-versa. O método inglês, empregado com sucesso extraordinário em circunstâncias análogas, é talvez o que mais vos convenha pela rapidez: “A nutrição, tomada em quantidade diminuta, compôr-se-á de carnes brancas, completamente magras e bem temperadas; legumes cozidos em água, sem manteiga, nem substâncias gordurentas, frutas, ácidos, bebidas aciduladas, diuréticas, vinhos brancos, café forte, etc. A esta alimentação deve-se juntar os sudoríficos e os purgativos salinos com intervalos certos. Também é indispensavel a ginástica feita por muito tempo. Recomenda-se o exercício a cavalo, em carro, a esgrima, a dança, a natação, enfim, passeios prolongados e a corrida até fatigar-se. Este regime, bem seguido, faz desaparecer o ventre mais volumoso e extingue a obesidade. O doutor inglês Wadd cita o exemplo de uma moça obesa que, tendo observado esta receita durante dois meses, perdeu 80 libras de corpulência”.

Espiridião copiava sem perder uma virgula o que lhe ditava Taquin.

— Conheceis Pico de Mirandola, que sabia 22 línguas aos 18 anos, e a quem bastava ouvir uma vez a leitura de qualquer livro para repeti-lo de fio a pavio? Aos 23 anos, ele possuía todos os conhecimentos humanos, argumentava com elegância e batia todos os seus adversários. Entrava na casa dos 24 anos quando foi a Roma e logo ao chegar àquela cidade anunciou que estava pronto para sustentar teses sobre quaisquer proposições, quer científicas, quer teológicas, sem exceção. O Papa Inocêncio VIII refutara treze dentre elas, que se elevavam a mil e quatrocentas. Pico deixara várias obras sobre filosofia e teologia.

Ora, se asseverássemos que Taquin refutara em um grosso volume toda a filosofia e teologia de Mirandola, quem nos prestaria crédito? Em breve vereis que somos em nossas propagandas mais circunspectos do que os jornalistas. Demais, Taquin traduz, fala, escreve, explica, argumenta, comenta trinta e seis línguas, inclusive a dos tamoios; conhece todos os ofícios mecânicos; enfim, sabe tudo, mesmo dizer missa em todas as seitas! É certo que a sua idade já é de um senador; mas ah! se os nossos excelentíssimos empoleirados que dormitam nas “curues”, tendo apenas em mente os nomes de seus afilhados, ou preces desconjuntadas com que aguardam a morte, como galo velho sitiado pela raposa; ah! se eles tivessem a memória do sábio francês! talvez não fossem tão amaldiçoados!

Portanto, à proporção que o rosto do seu amigo se desencapela, ele divagava com seu método inglês a ponto de ir parar na terra dos Helenos, “que possuiam entre todos os povos a beleza do corpo no mais alto grau”, ocupou-se dos seus exercícios e meios empregados para obterem tão grande força e destreza incomparável, que conseguiram.

Descrevera seus ginasiarcas e cozinhas, e sem abandonar o assunto falou igualmente de Mr. Puvis, cujos melões, regados por um método de sua invenção, chegaram a pesar de 30 a 40 libras, sem perderem nem o sabor, nem o perfume. Ainda mais, sustentando sempre a mesma teoria, citara o sábio Dumeril, que demonstrara depender entre as abelhas “a sexualidade, da alimentação e da quantidade de ar”. Mr. Milne Edward conseguiu parar a metamorfose dos embriões de rãs, privando-os de ar e luz, fazendo-os da mesma forma atingir dimensões enormes. Os ovos de ganso, galinha, etc, que se faz chocar por meios artificiais, produzem monstruosidades desta ou daquela parte, calculadas conforme a aplicação do calor durante o período da sua incubação. E os métodos apresentados pelo estudo do célebre Bakrwel não são tão importantes? Após 15 anos de estudo, ensaios, experiências, esse homem obteve privar ou dirigir para tal ou tal orgão os sucos nutrientes.

— Os bois, por exemplo, que ele criava para os açougues, eram dotados de pernas curtas, pança estreita, ossos pequenos, pele fina, enquanto que o peito e a parte compreendida entre as duas omoplatas era larga, profunda e carnuda enormemente; a massa muscular formava os dois terços de peso do animal. Julgando inútil os chifres dos bois destinados. ao corte, criou uma raça sem essas armas. É a Bakrwel que a Inglaterra deve os seus bois gigantescos, os seus grandes cavalos de carga, os seus corredores, e os mais belos carneiros.

O método conhecido pelo nome de Trainers, desse célebre inglês, espalhou-se pela Europa inteira, e pode sem inconveniente algum ser aplicado à raça humana, como no-lo confirmam os Boxeurs e os Jockeys que o executam à risca.

Taquin, como velha inda estirando o tipeti que escorre o sumo da mandioca, imprensa em resumo memorável toda esta arenga, encadeando a ela outra não menos importante sobre as modificações progressivas do estado social da mulher, que passando de cousa, que era em todas as legislações primitivas, à condiçao de serva, cujos pulsos roliços eram roxeados pelos grilhões da lei romana vitae et necis, quebrando os dogmas do Cristianismo o seu cativeiro e, vestal inviolável da liberdade, filha predileta dos preceitos de 1789, tornou-se rainha do universo, invadindo os salões, discutindo política, dominando nos clubs, comentando os artigos das gazetas, trocando a pena pela colher de pão, raciocinando sobre a inviolabilidade do Papa ou cumprimento e supressão das barbas. dos sacerdotes, zombando e inutilizando os anúncios dos médicos parteiros de mãos pequenas, acudindo ao rufar da caixa nos hospitais de sangue, ouvindo as preleções nas academias e.... Enfeitando-se à noite, fala ao amante a mesma linguagem do rouxinol entre flores, após os labores da jornada, preparando o ninho sobre o ramo pendente.

Chegando a este ponto, Taquin, que tinha por alvo desviar a Espiridião da estrada perigosa para onde o levava aquela paixão insensata, curvara de repente seu argumento em um sofisma fatal; provando que o amor é apenas um desvario fantástico da razão, desvario que cede ao mais das vezes a uma mudança de clima, a perspectivas novas, e concluiu, repetindo com Pelletan: “A mulher data do vestido; dantes era apenas uma femina hominis”. Mas desde o dia em que, vestida e sagrada pelo véu, vestal e guarda de seu corpo, pôde só atar e desatar o laço do seu cinto, desde então adquiriu a propriedade da sua pessoa, e conheceu o pudor!

E na verdade os mistérios são tão necessários para o amor como as sombras para realçarem a perfeição de uma pintura; e a mulher, sombra feliz, que dá todo o mérito ao quadro da vida, deve, como a sombra em luta com a criança, “evitar-nos quando procuramos prendê-la, prender-nos quando procuramos fugi-la”, e segurando-nos em suas tranças perfumadas, como baleias nos harpões, devem largar ou contrair a corda até nos debilitarem, como essas vítimas das jiboias das tradições das florestas; e, quando inertes, arrastarem-nos a seus colos, proferindo então em um olhar voluptuoso este doce juramento: “És meu; sou tua!”.

Eis o que extraímos da carteira do nosso amigo, com bastante dificuldade de interpretação, tão complicado era aquele labirinto de rabiscos. Sem dúvida as patranhas de Taquin abalaram seus cálculos; porém, como as vibrações enchendo a concavidade de um sino quando o martelo fere suas paredes, essas impressões varreram a caverna do peito de Espiridião e calaram-se pouco e pouco.

Logo pela manhã o comissionário Baudart viera receber suas ordens, e encontrou-o lépido, com uma carta volumosa, na qual consumira uma resma do mais mimoso papel parisiense, dirigida a Celline, renovando mil protestos de amor e expondo a esperança de satisfazer a condição que ela lhe impusera. Também Mlle. Alvina acudira ao chamado de Taquin.

A sorte do pobre Espiridião mudou de aspecto. Com efeito, um quarto, que a instâncias suas e para si mesmo Taquin alugara na rua Monsieur-le-Prince, no próprio sobrado que Celline habitava, servia-lhe de observatório, donde seguia os passos da moça. Devemos confessar, em abono da verdade, que o porteiro Gilliard se opusera com pertinácia à realização desse negócio, e apesar de vencido pelas balas de ouro, todavia continuava a desconfiar de Espiridião, cuja conduta lhe azoinava os miolos. Quais são os seus projetos? O que significa este homem passar aqui tempo esquecido, com a porta aberta, olhando para as pessoas que sobem as escadas, fumando bons charutos Londres, repimpado em fofa poltrona, bebendo constantemente café carregado e seduzindo os criados com gordas molhaduras?! E bandido espanhol não tem que ver! Ah! maldita Espanha, que descarrega todos os seus salteadores sobre a França, como se fossem poucos os nossos comunistas!

Estas reflexões atormentaram por tal forma o juízo do porteiro visionário que finalmente denunciou Espiridião à polícia, a qual o mandou espionar pelos seus agentes secretos. Espiridião, porém, era até certo ponto feliz; via sempre Celline, ou tinha sempre notícias dela por sua amiga Mlle. Alvina, a quem dava muito trabalho de lavagem, ou pelo commissionário, que tomara a seu serviço só para acompanhar sua bela, e levar-lhe suas missivas.

Celline era dotada de uma alma cândida; aceitava, pois, essas provas de afeição, com alguma desconfiança, é verdade, porém com bondade, e acedera em conversar de quando em quando com o nosso compatriota, o que tinha lugar no quiosque do Luxemburgo. Ela o escutava como se escuta a um amigo, proibindo-lhe qualquer declaração de amor, e dizendo-lhe, em sua última entrevista:

— Entre nós há um abismo, senhor! Aceito com reconhecimento a simpatia que me manifestais a mim, pobre desgraçada!, sem interrogar vossa consciência; mas não posso, e nunca poderei aceitar vossa paixão. Sois leal? quereis minha amizade? minha ausência vos causa pesar? Pois bem, eu vo-lo pouparei tanto quanto depender de minha vontade, se quiserdes poupar-me a dor de falar-me em sentimentos estranhos ao meu coração, que jamais acolherá as vossas palavras. Sabeis quem sou?

— Sois uma pérola! respondeu com efusão o nosso protagonista.

— Sim, meu caro pai às vezes me dá também esse nome, acrescentando, porém, que sou uma pérola no lodo! Oh! Fugi de mim!

Celline, deixando Espiridião estático, desapareceu assaz comovida. Durante alguns dias ele a procurou debalde; também Alvina não veio procurar roupa, sendo substituída por suas irmãzinhas, que se mostravam ignorantes às indagações quer do sábio, quer do brasileiro.

Baudart nada adiantava

Uma noite, Espiridião e Taquin acidentalmente foram à Closerie Lilas. Quem não conhece este baile de estudantes?

Uma coleção de tipos a mais completa; número crescido de mulheres de chinós de todos os matizes, pretos, louros, castanhos, russos, tintos; trajadas de todas as cores imagináveis e com botinas de tacãozinho alto, dançando, pulando, saltando, correndo, desprendendo risos, gargalhadas ou gracejos em escala de voz de flauta; homens de todos os países, idades e condições, imitando-as, ou perseguindo-as, convencendo-as, evitando-as ou satisfazendo os seus caprichos mais extravagantes, “lindos canários que se deixam cortar as asas?” e toda esta chusma descuidosa, “rolando uns em volta de outros como esferas celestes”, aos sons de excelente e estrepitosa orquestra, que abala o assoalho de salão vastíssirno, cercado de mesinhas, onde comem e bebem, uns jogando, atirando no alvo à pistola ou à carabina, outros filosofando em um caramanchão do lindo e imenso jardim; estes discutindo perto dos tanques cheios de peixes, aqueles.... enfim, quem saberá descrever fielmente esses bailes, que possuem todas essas originalidades que apontamos e muitas que escapam à nossa pena? Quem saberá pintá-los com os esmaltes que os caracterizam? Sente-se, goza-se, admira-se essa animação, porém reproduzi-la é difícil, quase impossível!

A vista de um namorado alcança mais longe do que a da águia. Descendo as escadas com o seu amigo, Espiridião reconheceu Celline e Alvina encostadas a um pilar, vendendo flores, no fundo da sala, e tentou romper caminho através das ondas compactas de corpos que lhe obstruíam a passagem para junto daquelas moças. Faltava vencer pouco para surpreendê-las quando se ouviu Celline soltar um gemido de cólera.

Um estudante, belo moço, de estatura elegante, de negra cabeleira pendente sobre os ombros, louro bigodinho sombreando os lábios, calçado com botas de montaria, com um chapéu tyroliano, de feltro, afunilado e guarnecido de penas de pavão, audaz abraçara Celline, selando seus lábios de rosa com um rápido beijo.

Espiridião não encontrara mais barreira diante de si; dir-se-ia que essa montanha devassara os ares e caíra sobre o estudante, despregando formidável bofetada, que o estendera por terra.

Um rolo embaralhou tudo; a orquestra irrompeu com estrépito, para abafá-lo.

Taquin, todo machucado, saíra das garras da morte, livrando-se das botinas que marchavam sobre ele, refugiando-se para debaixo de um banco, a malgrado seu; Celline e Alvina pálidas, lívidas, tremiam junto do brasileiro que, com um braço, as defendia com coragem de Titão, e com o outro repelia os partidários do seu adversário.

Os “sergents de ville” e os “gens d’arme” restabeleceram a ordem; porém um duelo de morte estava emprazado entre Espiridião e o marquês de Nirasceau, que se erguera por fim com o rosto ensanguentado e rangendo os dentes de raiva.

Continua [no próximo número]...

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* Romance romântico, publicado em capítulos, como folhetim, na Revista Lux!, Rio de Janeiro, 1874, capítulo IV, pp. 69-73.

** Francisco Gil Castelo Branco (Livramento, atual José de Freitas – PI, 1848, Marselha - França, 1894) foi diplomata, jornalista e escritor (romancista e contista filiado à estética romântica). Formado em Letras na França, residiu no Rio de Janeiro, onde colaborou em vários periódicos, como Revista Lux! e jornais, como Gazeta Universal e Diário de Notícias. Exerceu o cargo de cônsul geral do Brasil em Assunção (Paraguai) e em Marselha (França). Publicou, em folhetins, A pérola no lodo, romance humorístico (1874), Um figurino, conto (1874), Contos a esmo (1876), Os gansos sociais (1878), Ataliba , o vaqueiro, conto (1878), Pobreza não é vício (1884).

*** Atualização ortográfica e notas por Airton Sampaio, escritor e professor no Departamento de Letras da Universidade Federal do Piauí. Foram mantidas as grafias de certos nomes próprios, como Celline.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

UM FIGURINO*, conto de Francisco Gil Castelo Branco**

OFEREClDO À SRA. D. M...

É um pequeno trabalho feito às pressas***. Deveria talvez queimá-lo, não descobrindo em suas linhas descoradas nada, absolutamente nada que mereça prender a atenção de uma poetisa tão distinta como V. Exa. Contudo, ouso publicá-lo como prova de que sei obedecer às ordens de V. Exa, que o compreenderá e me perdoará as suas imperfeições.

Ofereço-o igualmente às suas dignas íntimas... que nele encontrarão também um signal de estima e reconhecimento, mas... sem dúvida perdi a aposta.

CAP. I

A história de um figurino! Devo contá-la?

É página escrita com as cinzas de um charuto, página cujos caracteres dcsaparecem ao mais ligeiro sopro de brisa!

É uma nota desafinada daquele tempo feliz em que nada turbava o meu ânimo, senão a cobrança do hoteleiro Barbosa; época de sonhos dourados; onda azul do meu Oceano de bonanças, balouça o teu fluxo e refluxo no bojo do meu tinteiro; lança as minhas ideias no papel branco, como a vaga impelindo sobre as areias da praia as esponjas que boiavam incertas!

Tragando a taça amargurada do presente, procuro as nuvens daquele horizonte deslumbrante que cercava o meu passado —onde as sumiram elas?! Lago de perfumes, onde navegava outrora minha barquinha com as velas enfunadas de esperança — secaste!... Bosque copado, onde sonhei tanto! —as tuas folhas tornaram-se amarelas, e caíram como caíram, uma por uma, todas as minhas quimeras!

Parece que foi ontem...

Em uma tarde terna eu conversava com algumas moças, belas e espirituosas que, afáveis, me prestam atenção.

Conversávamos; e sobre o quê? Qual o assunto que pode a mocidade trocar entre si com maior interesse?

Dizem que as donzelas do nosso século cuidam de política, maçonaria, literatura, e outros misteres de homens presumidos, não o sei; nunca as ouvi falar senão de modas e amores — e têm razão!

Eis o seu idílio natural, tão natural como o gorjeio do sabiá; tã natural como a harmonia da natureza; tão natural... Oh! meu Deus, seria bem triste o teu mundo, a tua obra-prima seria incompleta se a mulher esquecesse que o amor é a sua missão! Quanto seria triste então a nossa passagem pela terra, que se mostraria mais sombria do que a gaiola abandonada pela avezinha que fugiu, e canta além, na floresta, o hino da sua liberdade, voando de galho em galho, lá no cedro gigante.

Dizei-o, velhos celibatários!

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Conversávamos, portanto, sobre a influência do amor, e eu, insensato!, tentava convencê-las de que o meu peíto estava regelado; que eu encarava a beleza com o mesmo indiferentismo com que olhava para um figurino, que estava na mesa em que eu apoiava o braco.

No entanto, não mentia; dissimulava.

O meu coração, na verdade, cansado de lutar contra o abandono e a tradição, tinha as fibras enfraquecidas pela dor; mas quem me dera encontrar um ente que o agitasse de novo!

Clamo contigo, Chateaubriand: “É um grande mal para o homem alcançar mui cedo o alvo dos seus desejos, e percorrer em alguns anos as ilusões de uma longa vida!”

Aos vinte anos amei com todo o entusiasmo e... fui esquecido.! “Percorri o mundo e nada encontrei que substituísse o que eu havia perdido” nas lágrimas que verti, e perdi as últimas crenças nos prazeres de uma vida de insônias!

Quem me dera encontrar um ente que de novo agitasse o meu coração! E as cãs e as rugas já se aproximam de mim com suas feições hediondas, e ninguém escuta o meu apelo, e eu dissera às minhas amáveis interlocutoras que era insensível; eu o dissera, e elas talvez o acreditassem! Talvez e, quando me despedi, uma dessas moças, com o espírito sutil, com a malícia própria do seu delicado sexo, com um sorriso sedutor, como o não tivera Eva, apresentou-me o figurino, dando-me familiarmente esta lição de cortesia: "Leve-o; guarde-o, pois que ele constitui o objeto da sua admiração!” 

Corei; aceitei o presente; pendurei-o com um broche vermelho à minha cabeceira, e nunca me deitava sem lembrar-me do meu quadro, sem lhe dirigir urna oração de zombarias, ferindo o poder da mulher, o que eu julgava ineficaz contra a minha experiência! Loucura! O homem nunca é assaz experiente para amar segundo o impulso dos seus caprichos! Vereis: pouco e pouco os traços, que formavam o conjunto daquele desenho, gravaram-se em meu cérebro, como as linhas tiradas pelo giz sobressaindo na lousa! Pouco e pouco me apaixonei por aquela estampa de modas, que contemplava durante horas esquecidas, e contemplava como nunca o fizera inglês algum perante a Madona de Rafael!

Era um delírio! Eu via-a por toda a parte: Em meus sonhos ela se mostrava tentadora, e eu experimentava uma sensação estranha, sentindo as suas madeixas roçarem docemente minha fronte; e, com o seio arfando sob essa impressão dulcíssima, eu repetia em êxtase a linguagem de Michelet: “Um simples fio de cabelo de mulher vale tanto, muitas vezes mais do que um mundo!"

Os seus olhos fascinavam-me então e, dominando o meu pensamento, como pirilampo trilhando as trevas com as suas lanternas, transmitiam à minha alma urna volúpia insaciável!

Era um delírio! Eu via-a por toda a parte: Em os meus momentos de spleen, descobria-a embalando-se entre as espirais de fumaça que exalava o meu cigarro, convidando-me para subir consigo às regiões etéreas!

Era um delírio! Eu via-a por toda a parte: Entre as espumas de champanhe, também a distinguia nadando como uma sereia, seduzindo-me com o seu canto a descer consigo para um abismo insondável de delícias!

Visão celeste, quanta aventura me alimentaste, e quanta amargura me fizeste sofrer, transformando-te em realidade!

Quantas recordações, quantas! Mas o meu temperamento saltitante recusa arrastá-las sobre queixumes, e dando, portanto, alguma elasticidade à crônica, coloca-a de chofre entre os bastidores do seu teatro, que não foi outro nem menos do que a cidade de Campos.

Conheceis?

Célebre nas tradições dos Goytacazes; célebre atualmente pela importância da sua lavoura sacarina, cujos mecanismos são os mais aperfeiçoados que porventura existam entre nós, o seu nome retine pelo nosso Império, levando — cunho e malha — como sinônimo de riqueza; e, fato singular!, mesmo nos círculos ignorantes, ele é vantajosamente aceito ao longe, graças à exportação crescida dos seus doces bem tacheados.

Campos, como todas as povoações brasileiras, que assaz mostram provir de uma mesma origem e haverem sido levantadas em uma quadra de especulação e atraso, tem um aspecto carregado e, se eu não retraísse a exageração, diria que as suas ruas estreitas, tortuosas, escuras, malcalçadas, se assemelham à boca de uma bruxa octogenária; porém, não; não acarreto sobre a minha corcunda esta responsabilidade, que apago in limine, comparando a regularidade de sua construção a uma caixa de música, cujos dentes quebrados, uns mais, outros menos; uns enferrujados, outros perfeitos, funcionam sobre o cilindro, que gira sempre com precisão. Esta é a sua fotografia microscópica; porque, se os casebres esquisitos, mascarados de rótulas, bisnetas talvez de Badajoz, aqui ostentam a sua ascendência, zombando do perpassar da civilização, elevam-se dentre eles, como o rubro pendão gracioso da bromélia entre os raquíticos juncos dos brejos, soberbos prédios, verdadeiros palacetes, que atraem o olhar pelo seu garboso pórtico, aniquilando a triste lembrança que deixam as paredes úmidas e coradas de poeira daqueles alçapões cosidos com teias de aranhas e prestes a desabarem de instante a instante.

Contemplando essas carcaças — não me queiram mal pela franqueza —, contemplando-as, fico frenético, mau, intolerante, herético e... confesso! procuro em mente urna prece fervorosa, que dedico às santas do meu calendário, suplicando-lhes a caridade de abrasá-las em um incêndio!

Lisboa deve o seu aformoseamento ao terremoto que em l755 a desmoronou; Campos se tornará uma linda cidade quando a abandonarem as suas antigualhas, sem grandeza nem arquitetura.

É minha convicção, percorrendo o seu majestoso Paraíba, mais fértil do que o decantado Nilo, e que rola em suas águas mais ouro do que nunca o arrastara o Pactolo das lendas.

Campos... receio! — ainda dois minutos, e digamos que a índole dos seus habitantes é dócil como o caldo dos seus famosos engenhos e, se porventura a efervescência de uma política endiabrada, que felizmente caducou, os tornou severos, desconfiados, algum tanto egoístas, mesmo insociáveis, o assobio dos vapores, o rolar vertiginoso das locomotivas, formidáveis serpentes de Faraó, como as denomina Figuier, bufando as camadas de fumo através das suas matas preciosas, vão purificando, apagando essas dissidências fúteis, e restabelecendo a sua nomeada de hospitaleira e jovial, corno a gentil camponesa que sempre satisfeita, radiante de júbilo, conduzia o rebanho pelos prados floridos, tangendo o pandeiro que entoava as suas cantigas, inspiradas falas endereçadas ao seu jovem pastor, que lhe respondia d’além em flauta sonora, partindo pressuroso para abraçar a sua amante sob uma moita tecida de trepadeiras silvestres e lianas... Campos, és caluniada!

Que me importa se em teus restaurants a maledicência ociosa rufa a minha insignificante reputação, se os teus filhos honestos me cerram a mão de amigo!

Que me importa se os teus salões se conservem fechados à minha individualidade, se em teus hotéis encontro sempre quentes assados e vinhos frescos!

Que me importa a falta daqueles prazeres mundanos, que se vendem além, nas praças públicas, se encontro o trabalho!

Foste o berço dos meus enleios, nunca te esquecerei!

Ali ainda avisto, lavrada pelo corisco, a pobre palmeira, outrora tão vivente, que guardava o ninho dos meus amores. Mas, invocando essas reminiscências, assentemo-nos à sua triste sombra e revelemos os nossos segredos, baixinho! — baixinho! — tão baixo que apenas nos ouça o compassado sussurro do regato constante que ainda banha o seu tronco, ou o embate do vento que ainda brinca entre as dobras do seu desbotado leque, como a loura criança com os seus róseos dedos alisando os fios de prata da cabeleira do ancião, narrando-lhe ingenuamente a história dos seus brinquedos. Assim, contemos a história do nosso figurino. É tempo!

CAP. II

A folhinha marcava glorioso dia para um dos subúrbios desta cidade, que o aproveitava festejando o Espírito Santo, sem perder um minuto das horas que voavam sobre o mostrador dos relógios. A influência muito prometia, sendo o seu termômetro o cabeleireiro francês Mr. Hyppolite, que não descansava então; e, com os sapatões alvacentos de poeira, airoso, carregando a lata cor de chocolate, contendo os ferros da sua generosa profissão, as pomadas... o pó de arroz... . as tesouras... os ganchos... e os alfinetes, atendia com exatidão aos chamados que lhe provinham de todos os lados intra et extramuros; uns, querendo que ele fosse, calcantibus pedis, frisar a senhorita; . outros, reclamando o monstruoso chinó, que vicia a remendo como casco de fragata avariada; outros... e o bom francês, entre um sapresti! e um sacrebleu! achava tempo para tudo, distribuindo-o com mais facilidade do que a de um ministro da Fazenda, é verdade, porém, acrescentaremos, em prejuízo às vezes de algum freguês, a quem barbeava com pouca atenção, arrepiando, portanto, a sua pele no fio da navalha!

Sou indiscreto!

Também os boleeiros, parafusados nas almofadas dos seus coches, como que formando com eles uma única peça, apesar de alguma diferença haver entre os seus corpos e os corpos das suas parelhas, magras mais do que o Rossinante de D. Quixote — os boleeiros estavam altivos em seus postos, onde não os alcançava qualquer psiu! Tinham maior trabalho então do que um excelente empregado de rendosa alfândega.

Os moleques não podiam ser enviados à rua porque esqueciam os recados, esquecendo os estalos da palmatória pelos estalos das bombas que arrebentavam, saudando o Santo lá perto da capelinha, e seguiam, com a pupila dilatada de inveja, os tabuleíros enrebuçados de toalhas bordadas, que passavam às dezenas procurando a mesma direção.

As velhas vestiam as suas capas solenes; fechavam todos os cantos da casa; empurravam o molho de chaves nas profundas algibeiras, penduravam a cruz de ouro ao pescoço; persignavam-se em frente ao clássico oratório e, tocando as filhas dois passos para a frente, transpirando, bufando, arrotando... e... marchavam na pesada cadência de quem busca o caminho do céu, seguindo-lhes as pegadas um bando de mulatinhas com as suas roliças contas de aljofares, chinelinhas de verniz estalando nas calçadas com adelman, e os lencinhos de cambraia ensopados d´água-de-colônia.

Diabinhas! — eram também acompanhadas em distância conveniente pelos garotos destemidos.

Os caixeiros em seus trajes do casimira — bons maganos! — trilhavam o mesmo plano, contentes, certos de alcançarem a vitória das conquistas, como outros tantos Cruzados embarcando-se para Jerusalém.Quantas cativas não trariam eles, vencidos os Sarracenos!

Os patrões, com os feltros escovados, botinas reluzentes, e bengalas comme it faut, mostravam-se em grupos nessa mesma estrada, dissertando sobre as transações comerciais, ou sobre o importante processo que me lavrou a Sapientissima loja escocesa Zacatyog, a bem da fraternidade universal.

Belzebu no conselho dos demônios proferiu esta sentença: “Quanto a mim, reinar é digno de ambição; é preferível reinar-se no inferno do que servir-se no céu!.”

…and in my choice
To reign is worth ambition, though is Hell!
Better to reign in Hell, than servo in Heaven!...

Este princípio do chefe renegado talvez angarie muitos adeptos naquele recinto de luz embaciada, onde os poderosíssimos lords ingleses, com as suas fachas de íris, e... Silêncio! perjuro plebeu! Eles são corajosos e... Cuidado com a demissão da Inspetoria! Apre!

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Enfim, temendo a prolixidade, falaremos da concorrência que atraía a Sacra Cerimônia, asseverando que a Casa Arthez & Vigné ficou sem um par de luvas brancas: secas, manchadas, todas venderam, lastimando-se os seus colegas de não terem contado com o caso para encomendá-las aos seus correspondentes no Rio. Como incorreram neste descuido, pois ignoram que é aqui de bom-tom o uso da luva branca de senhora, com qualquer toilette, em qualquer circunstância?

Causa-lhes reparo esta observação? O ganso é deste talhe, e cada terra com o seu uso, cada roca com o seu fuso, canta o rifão; porém, na tarde de que nos ocupamos, muitos fusos perderam as rocas, e muitas rocas perderam os fusos, que convergiram todos para o Sacco. Para o Sacco?

Sim, e não se torça a interpretação da cousa; que apenas exprime agora o nome da localidade onde se celebrava a festa do Espirito Santo, que foi admirada, louvada e lembrada como sendo uma das mais pomposas que brilhou naquele sítio, de há meio século para cá, o que ousamos afiançar porque assim o afiançavam as beatas, em opinião redonda, opinião que os assistentes compartilhavam, não constando nem da imprensa, nem das notícias particulares, que o Sr. Delegado de Polícia houvesse feito ali uma única prisão. No entanto o Zé Bonito, que fora o imperador, se comportara na altura de sua hierarquia, e não poupou a jeribita; corre mesmo que os móveis da sua sala ficaram salpicados do cerveja da fábrica Teixcira & Freitas, e algumas botijas enxugaram também daquela que tem a marca Areas & C.

E não houve milagre!

Foi milagre!

Mas que pomposa festa!

Os altares da modesta igrejinha, tão modesta que as suas paredes imploravam aos fiéis uma lavagem de cal, os altares da igreja estavam decorados de ganga escarlate, orlada de galão de prata, e em o seu frontispício ardiam doze lamparinas de vidro em linha curva, o que nunca se vira anteriormente, bem como os diletantes apreciavam um charivari interminável de quadrilhas, fandangos, polcas e lunduns, que executavam em altíssimo palanque oito instrumentos burnidos. A requinta estava insigne e o ofeleide retinia a distancia, rivalizando com o zabumba!

O império fazia-se igualmente notar, rodeado de ramos; e a folia, batalhão de crianças trazendo a bandeira, salvas, colomba, cetro, etc — era escolhida, perfeitamente luzida, estando os seus arqueiros — sem exceção! — com as calças brancas bem engomadas, as jaquetinhas encarnadas bem talhadas, e os gorros de lã com bolotas de retroz.

O manto do imperador do Espirito Santo era de cetim de mil réis ao metro, e os seus calções — corre em cochicho! — foram cortados pelo hábil alfaiate Constant Jeudy — somente, é pena! — as meias do altivo e espigado monarca eram de algodão, e assaz largas para os seus mirrados caniços. Em compensação, o trono estava dourado, e não se regateavam os bentinhos, que eram generosamente distribuídos, sendo a razão de se ver todos os pelintras e meninas coquettes com as asas do Espirito Santo, ou o seu olho milagroso, presos nas golas dos paletós e nas fitas dos vestidos.

A praça e suas circunvizinhanças estavam atopetadas de cavalos selados, carros puxados por bois, e cobertos de vistosas colchas de papagaios, etc., distinguindo-se, pendentes no interior dessas traquitanas, o espelhozinho de mascate com a efígie de Garibaldi, o pente de búfalo, saias, moringas, balaios. e outros trastes, indicando assaz que esses veículos incômodos, com as rodas ainda enlameadas, chiando sobre os eixos, arrastaram da roça famílias apreciadoras infaliveis do esplêndido fogo de artificio — como bacharelavam meus avós — composto de quatro estrelas, um amolador, um judas, e um navio, tudo suspenso em varas resistentes, onde também se prendia a curiosidade dessa boa gente, a quem não faltavam os comentários, aguardando o momento supremo, assentada em esteiras novas, chupando balas ou regalando-se de amendoins torrados, que comprava nas quitandas, que se perdiam além, como o provava a carreira de lampeõezinhos ou velas de sebo espetadas nos cantos das caixas de flandres contendo a mercadoria, cujo aspecto tanto aguçava a gulodice dos gamenhos que, com a voz sussurrada, os retinham com a frase mais conhecida — Me dá um vintém?

Vários botequins, improvisados com palhas de coqueiros, formavam divisões e compartimentos reservados, onde os galans pagavam alguns bocks, ou cafés temperados com rapadura, ou mesmo algum retalho de galinha endurecida, às suas almisquentas namoradas que, assentadas em bancos de madeira pesada e servidas em mesas da mesma marcenaria, julgavam-se todavia valiosas princesas do Mongol.

Forte pouca vergonha!

Aqui, sobre um pano engordurento, ferve o jogo de cartas; acolá, descanta um boçal trovador modinhas venenosas, com a toada de um violão rachado de tanto carpir, em disputa com a viola ou cavaquinho brejeiro!

Os sinos dobram anunciando o fim da ladainha ou terço, ou reza equivalente, que no interior da modesta capela grasnava o choro de capuchas assentadas nos tijolos, com as pernas estendidas em forma de X quebrado pelo centro, e esguichando cada qual mais alto, na crença provável de elevar melhor as suas preces à mansão divina, remindo assim com prontidão os seus pecados, embora as suas invocações fossem estropiadas em latim ou grego, formando, essa colocação de sílabas esquisitas, calimburgos interessantíssimos que por certo fizeram S. Pedro rir-se às gargalhadas, vertendo-os para a língua vernácula com dificuldades inauditas, apesar da sua ciência divina. Estes, por exemplo, Salus infernorum — Janua cavli—Kirie leison — que essas gargantas de trovão retiniam ao longe: — Sal em-pé-de-moro — Joanna-sclla - cristél - é - são!

Em resumo, o leilão teve tantas joias que assombrou ao próprio pregador da festa: segredos, ceras enfeitadas, pombas, galos da Conchinchina, carneiros, um cevado, um vitelo mesmo! figuravam entre as mil dádivas proclamadas às massas...

As fogueiras já estavam acesas, e alguns pretos velhos de ganho pitavam tranquilamente ao lado delas em seus cachimbos de barro, rememorando as passadas façanhas; os moleques, com os guinchos dissonantes, visavam a descida das flechas dos foguetes que cortavam o ar; o povo emaranhava-se, escolhendo posição para apreciar o maravilhoso fogo de Bengala que ia arder; quando — levado pela corrente da multidão, passando perto do adro, apercebi — oh! porque não foi uma ilusão de óptica! — apercebi a encarnação do meu figurino! A linda mulher, que eu amava em sonhos, estava ali, em frente de mim, a dois passos de mim, de mim que a adorava sem conhecê-la, e que endoideci quase com o prazer de encontrá-la!

O seu vestido de seda verde cor de garrafa, como o do figurino, também as suas tranças de um castanho alontrado,ondulando um labirinto de seduções; os seus olhos, negros como a escuridão do caos, brilhantes como a estrela Vênus, desenhavam-se numa curva de extrema pureza; as pestanas longas e acedadas faziam sombra na alvura do seu semblante levemente tinto, como a pétala da rosa nos seus últimos instantes de fragrância. O seu pescoço era torneado como o tem somente a gazela, e branco como o floco de algodão prorrompendo o invólucro; os seus lábios de nácar limitavam uma boca graciosa como a conchinha que se abre, boca que encerrava uns dentes de pérola, e... enfim, “a graça estava em cada um dos seus movimentos, o céu em seu olhar, e em cada gesto a dignidade e o amor!” — "Grace was in all her steps. Heaven in her eye. In every gesture dignity and love..."

O dúbio reflexo de uma lanterna batia sobre as suas feições angélicas, formando uma auréola para a sua beleza incomparável. Uma exclamação partiu do meu peito, assustando-a; e, sem dúvida, eu tomaria essa mulher como visão sobrenatural se não ouvisse a sua voz melodiosa responder a uma pergunta trivial que lhe propusera figura exótica e rubicunda que, tendo suspenso sob o braço o volumoso chapéu de sol, cujo cabo bem se prestaria às funções de muleta — sisuda e cortês oferecia uma pitada da sua esmaltada tabaqueira de bispo ao círculo que lhe prestava reverência.

Este tipo burlesco eu já conhecia de muito e merecia a sua consideração, porém nunca me passaria pela ideia que semelhante tronco gerasse uma prenda tão delicada.

São caprichos da natureza; e quem não tem deparado com extravagâncias idênticas? Quem não sabe que a célebre rosa de Jericó expandia os seus perfumes em terreno ingrato e estéril? Quantas vezes o gênio artístico curva a sua altivez, repleto de entusiasmo, colhendo sobre as ásperas escamas da rocha uma folha aveludada, cujos matizes riquíssimos são combinados com tanta harmonia e graça que nunca pincel algum conseguiria reproduzi-los?

É sobre a casca repulsiva que arrebenta a parasita resplandecente e formosa; é sobre o galho seco que o colibri de plumagem deslumbrante suspende o seu ninho e agita as suas asas furta-cores! Assim também D. Amália d’Amarante, a mais bela das moças, era filha do Patrocas, o mais imperfeito dos homens. Que me importava já a sua fealdade, com a qual tanto eu antipatizava? Procurei, e consegui, sem dificuldade alguma, frequentar a sua casa, procurando aproximar-me daquela mulher que adorei sonhando e pela qual perderia a vida se ela desprezasse esta afeição desmedida que lhe era consagrada.

Eu mendigava um sorriso dos seus lábios sem indagar dos perigos, e para conquistá-lo sentia animar-me maior coragem do que a de Pescecola afrontando os abismos de Carybdes, para merecer a mão do ente amado. Também o que não empreenderia eu para ser digno do seu afeto? E como chegaria a obtê-lo?

Parecem retinir em meus ouvidos as gargalhadas dos pilantras que, pesando a minha ingenuidade, declinam-me os títulos de tolo, pateta, e concluem — tenho pejo de lavrar a sentença — concluem chamando-me — inocente — na essência do adjetivo. Na verdade, sempre fui tão acanhado perante as moças que nem mesmo seria capaz de lhes conceder um beijo, se mo suplicassem!

Nunca, nunca guardei firmeza ao contato de uma fímbria de vestido, o que sempre produziu choque mais forte em meu sistema nervoso do que se ele experimentasse o roçar da cauda mortal do peixe elétrico do rio Mearim! Nunca, nunca resisti às chamas de um olhar de... donzela, devo acrescentar, porque as velhas nenhuma ascendência exercem sobre as minhas cordas sensíveis. Nenhuma, e podem submeter-me à análise!

Contudo, apesar da originalidade da minha compleição, não fui tão parvo como se poderá julgar, porque em curto espaço de tempo eu cativara a confiança do bravo tenente-coronel, discorrendo com loquacidade invejável sobre a Bahia, sua terra natal, cujo aspecto, formando um anfiteatro, assemelhando-se a um presepe, banhado pelas águas azuladas de um golfo extenso, onde outrora nadavam as baleias, era tema irrevogável da nossa conversação, tema que eu estudava diariamente, em todas as fases, para ali desenvolvê-lo em formas poéticas antes da chávena de chá, bebida da sua predileção; inúmeras vezes ouvi-o queixar-se amargamente de uma associação de beneficência que, restringindo das despesas, dera um baile de caridade sem oferecer a bandeja de água choca, segundo os costumes coloniais.

Ele era antes de tudo homem de estômago; não aceitava ideia alguma generosa se porventura ela não acariciasse o seu tubo digestivo! Era um desses bípedes qualificados nesta máxima do Evangelho: Para os pobres de espírito, o reino do céu!

Também eu decantava o passeio da capital da sua província, Mulata Velha, como a denominam. A igreja da Conceição da Praia, a Soledade, o Convento de S. Francisco, a romaria à celebre capela do Bonfim entravam igualmente com nosso catálogo de palestras intermináveis.

E a festa de 2 de Julho! — festa em que a população inteira, estudantes, negociantes, todos marchando unidos, vestidos de branco, com fitas auriverdes a tiracolo e flores nos chapéus do Chili, entusiasmados, arrastam carros de papelão contendo dois manequins representando um caboclo e uma cabocla que, entre uma algazarra infernal de fanfarras, sinos, cornetas, tambores, assovios, estalos de foguetes. rinchos de animais, e outras notas perdidas... marcham em triunfo pelas ruas da cidade até ao túmulo do general Labatut. É’ o aniversário da independência da ex-capital do Império; é o dia de maior alegria naquela gloriosa terra, e também... é o dia de maior namoro!

Revendo estes costumes, que são sagrados para um baiano, eu enfreava a vigilância de Patrocas, e achava brecha para atirar a minha setinha sobre o seio de D. Amália, que nos ouvia com atenção, sem todavia intervir no nosso diálogo. Contudo, nem sempre o jogo me corria bem porque, se iludimos o marido, a bruxa da sua costela, a respeitabilíssima senhora D. Quitéria, ali estava alerta, como sentinela avançada, com a vista acesa, os ouvidos escovados, acompanhando os meus movimentos mais sutis.

Quantas vezes estive prestes a renunciar a esta empresa arriscada! Mas nunca pude dominar-me. Creio mais fácil escalar uma fortaleza do que fazer-se uma declaração de amor nos nossos salões, onde o papel principal das senhoras solteiras é o de comparsa: escutar, calar, gesticular e retirar-se. Bom dia, boa noite, passou bem? são as únicas expressões que pronunciam com franqueza, e ai delas se não seguem à risca o programa!. . Uma faísca jorra da careta enferrujada da mamãe, reprimindo a ousadia, e o janota não se assenta mais nas molas das suas cadeiras... Atrevido! Salta fora!

É preciso tática, paciência, hipocrisia, para levar-se água ao moinho... . . Foi o que fiz a respeito de D. Quitéria. Custou-me, é verdade; porém atinei com a ponta do fio do seu novelo! Ela era fluminense, e ficou verdadeiramente minha amiga, asseverando-lhe eu que Paris é mais triste do que o Rio de Janeiro; que Nápoles e Constantinopla, com suas baías tão citadas, são dois canjirões à vista da bela Guanabara; que Londres é um deserto para quem gozou do movimento da rua do Ouvidor, e que a água do aqueduto de Lisboa é péssima para quem matara a sede com a da Carioca...

Quanto a D. Amália... marquemos aqui uma fermata; porque as lágrimas rolam pelo meu semblante e caem ardentes, apagando a data do meu namoro: 1 de abril de 1870.

Não posso passar além: os suspiros, os soluços, as palpitações... Ah! desfaleço...

CAP. III

O mais doce momento que marca a nossa existência; o momento que nunca mais se apagará da nossa memória é aquele em que dois olhares se cruzam, lançando um sobre o outro expressões ardentes de linguagem misteriosa, revelando o poema — imenso em uma só palavra — Amor!

Como as raízes das plantas sorvendo da terra o suco precioso que se transforma em seiva, a qual, por sua vez, passando através da hástea e dos ramos, dá vida às folhas e às flores, de que brotam os frutos sazonados pelo sol — assim também se germina a paixão, agitando em nossas artérias o sangue generoso que se cristaliza em o coração, alimentando este sentimento sublime, sem o qual a existência seria um degredo terrível, um lugar de trevas, “um zimbório negro, medonho, cheio de pesares e obscuridade, onde a paz e o repouso nunca poderiam habitar e a esperança jamais alcançar!”

— Amor! Torrente de fogo
Que as almas nutre e devora!
T. DE MELLO

Amor! — A sua linguagem purifica-se de lágrimas, como os vapores caindo em benéficas gotas de orvalho; e como as nuvens, aglomerando-se e trocando as suas faíscas elétricas, confundem-se em estrepitoso encontro; assim, em sorrisos ela se transmite, rápida como a corrente magnética, firme como a nota harmoniosa da natureza.

Ai! dos namorados se não fossem auxiliados por esse dom inapreciável — como se fariam entender em os nossos salões brasileiros, onde a donzela não tem liberdade de pensamento e apenas a tudo responde por monossílabos insípidos!

Os velhos! Os velhos — malditos velhos! — alerta, maliciosos intolerantes, observam-na com escrúpulo.

Foi o que me sucedeu a respeito de D. Amália.

Vários meses nos correspondemos por sinais cabalísticos permutados durante as gargalhadas do tenente-coronel Patrocas, que felizmente as “encadeava”, prolongadas e sucessivas, com as suas anedotas baianas. Eu principiava todavia a sentir necessidade de expandir-me; este gênero de namoro acabrunhava-me; parecia que eu tinha o coração em estufa, ou antes em uma caixinha onde saltitava como a “agulha de marear” determinando os pontos cardeais. O seu “norte” era o semblante radioso de D. Amália.

Porém... malditos velhos! que esquecem os seus dias de mocidade, e em tudo, com a vista “empanada” de cataratas, distinguem abismos ou interesses!

Têm razão! dirão os filósofos. Enganam-se, replicarão os dândis. — A contrariedade provoca a luta, a luta aguça os sentidos, inventa a astúcia, supera os obstáculos, envenena as crenças, a castidade d’alma; e, apagando o prisma, que dourava o futuro da virgem, deixa em troca dele, no seu leito nupcial, a túnica do indiferentismo e o véu da discórdia!

Em um baile — não sei como —, aos sons dos instrumentos, alucinado pela sua beleza, revelei a Amália o segredo que havia muito ela conhecia, o segredo que havia muito ela aceitara, o segredo que a cada instante ela esperava ouvir dos meus lábios.

Revelei-o; desde então, renegando os meus princípios, abandonando a repugnância e asco que sempre dediquei a esse gênero de correspondência secreta, em voga entre os namorados da nossa sociedade, parece-me impossivel!, paguei a uma escrava da casa da minha adorada para lhe entregar os meus bilhetinhos perfumados e outras bagatelas equivalentes, que lhe diziam o que me era vedado expor em os salões de seus pais, com sinceridade maior e mais comedida. Chamei uma escrava para minha confidente! Oh! Horror dos horrores! Chamei a ignorância, a estupidez, para intérprete dos meus sentimentos mais elevados! Ainda coro de vergonha e humilhação.

Usei deste expediente; e, confesso a minha miséria, usei-o em doses crescidas, escrevendo diariamente muitas cartas a D.Amália. 

Se em um momento de desespero eu não as houvesse queimado, talvez agora pudesse publicá-las, formando um grosso volume, e por certo seriam lidas com igual interesse àqueles que as pessoas sensíveis encontram saboreando as de João Jacques Rousseau. 

Sem dúvida a minha fraseologia não era apurada como a do célebre filósofo francês; eu não as escrevi com o estro de Saint Preux; porém verti para o papel o entusiasmo da mocidade arrebatada para um mundo de ilusões.

Eu era natural, desprendendo-me de toda a grandeza d´alma a minha paixão desmedida, paixão tão ardente quanto a do professor de Julie; louca quanto a de Werther à sua Carlota, imensa como a de Romeu a Julieta!

Não imortalizei Amália como Petrarca à sua Laura; não tive urna lírica sublime para decantar o seu nome como Dante o do Beatriz; nem consegui urna coroa de glória, que rne desse um raio para iluminá-lo através da escuridão dos séculos, como Camões o da sua Catarina; não pude chorar esses dias venturosos, como Dirceu separando-se da sua Marília; mas, como eles, entes privilegiados, como eles, também amei! Tanto quanto eles amaram suas deusas, amei também D. Amália, e amei-a talvez com mais fervor, porque a amei nas crenças dos meus vinte anos?! Por que não perdi estas recordações amargas na febre da loucura ou no silêncio de um túmulo?!

Tive um rival, o alferes Pacheco de Sousa: homem ignorante, soberbo, vaidoso, rico, também se propôs candidato ao ídolo das minhas adorações.

É verdade que D. Amália o desprezava. Mostrando-me ciumento desse indivíduo, ela respondeu-me:

— Crês que tenho péssimo gosto, o que não me é lisonjeiro. Não tenhas receio, o alferes Pacheco é um... bicho, que falia sem gramática, nem oportunidade; saca dos pés a botina em reuniões de cerimônia; escarra sobre o tapete como marinheiro que masca; palita os dentes com alarido no fim de cada prato, que devora como tigre, espalhando pela toalha parte do seu conteúdo; assoa-se no guardanapo; fuma como chinês; conta com ufania a barbaridade com que castiga os seus escravos ao mais leve pretexto; julga conveniente ridicularizar as mulheres; arrota sempre os títulos descohecidos de sua familia, oriunda dos “Deuses”, segundo a sua expressão habitual, apesar de seu avô haver sido vendilhão; enfim, acho-o atrasado, arrogante, e... é urna estampa que serviria talvez para “corretor”, ou o que imaginares de pior, levando em conta o seu nariz arrebitado, a sua cabeleira arrepiada em um todo raquítico, e as unhas aguçadas como as de um abutre... Meu pai é extremoso, minha mãe nunca me contrariou; estou certa não terei outro marido senão o da minha escolha, e esta escolha sabes que recaiu em ti.

Amália era uma moça espirituosa, instruída; não como geralmente se costuma aquilatar as donzelas que tocam quadrilhas de “Offenbach”, quebram os ouvidos alheios com alguma canção de Alcazar completamente aleijada, ou mutilam recitativos extravagantes, que não compreendem, incapazes de tomarem sem erro um rol de roupa suja; mas, em contrapeso da balança, dançam valsas inglesas e tagarelam sem importância sobre os romances de Alexandre Dumas, Paulo de Kock e... não cito um autor nacional, temendo discussões. Não, D. Amália não era desse número; inteligente, romântica, dotada de uma natureza exaltada e perscrutadora, ela entregara-se ao estudo, lutando contra a solidão dos seus vastos aposentos claustrais, e pouco epouco aperfeiçoara o gosto e adquirira grande soma de conhecimentos. Era
instruída, muito instruída; mas não aprendera a decifrar a ambição de seus pais; iludia-se. Eu iludia-me igualmente! Levado pelo acolhimento familiar que me dava Patrocas, que eu confundia com uma amizade extremada, escrevi-lhe pedindo a mão de Amália.

O velho veio logo à minha casa; e tão alegre estava que julguei ter “vento à bolina”.

— Então quereis a mão de minha filha?, disse-me ele assentando-se, e sorvendo uma formidável pitada, talvez a maior que jamais eu o vira arrancar da sua primorosa boceta.

Quantos indícios de bonança! Ganhei! ganhei! cochichava com os meus botões e, animado pela aparência, respondi-lhe com o sangue-frio de uma diplomata em cumprimentos.

— É verdade, meu tenente-coronel; a mão de sua filha é o mais rico tesouro a que aspiro.

Patrocas fixou-me com olhos de lince e... maldição! descoseu um gargalhada satânica, uma dessas gargalhadas zombeteiras, que parecem intermináveis, ferindo como a lâmina aguda de um estilete.

Fiquei lívido, estático como coluna de mausoléu. O velho “fungou” uma segunda pitada e, com ar grave, porém bondoso, acrescentou:

— Sois um bom rapaz, e eu sou deveras vosso amigo; porérn não refletis desejando a mão de Amália. Ela está comprometida. Paciência, homem! Paciência! Este negócio ficará entre nós, que seremos sempre os mesmos camaradas, não é verdade? Amália em breve será esposa do alferes Pacheco e...

Eu parecia submerso em um pesadelo pungente, e este nome despertou-me, como o escalpelo chamando à vida o corpo regelado de um ente que, sofrendo de catalepsia, já estava considerado cadáver sobre o mármore, em algum anfiteatro de antigas escolas; e, com voz cavernosa, abafada na dor, vexame, cólera, redargui-lhe com esta pergunta:

— É um gracejo, tenente-coronel?

— É sério.

— Enganai-vos. Tomai o meu conselho, e ficai certo das minhas palavras. Continuaremos as nossas partidas de “sollo” e... não façais maus bofes perdendo esta vasa; vereis que tenho razão.

Tomando uma outra pitada, ele tisnava-me o rosto com estes insultos, com tanta calma, como se me rendesse as maiores finezas. Não pude conter o meu desespero.

— Considerais-me um especulador?

Ele calou-se.

— Sr. Patrocas, D. Amália detesta o alferes Pacheco, e ama-me; não realizareis, pois, os vossos bárbaros intentos.

— E as provas?

— As provas, ei-las; e, tirando de uma gaveta um bauzinho que continha a correspondência de Amália, apresentei-lha.

Eu delirava!

Patrocas, examinando essas cartas, ficou por seu turno pálido como a porcelana do Japão, e em tom convulsivo, estridente, adiantou-se para mim com os punhos fechados, proferindo estas palavras injuriosas:

— Sois um infame mentiroso!

— Miserável! — repliquei insensivelmente, levantando uma cadeira; ele imitou-me, porém um poder oculto susteve os nossos braços, que se abaixaram, deitando por terra os instrurnentos de agressão. Encaramo-nos como duas hienas prestes a dilacerarem-se; meus olhos umedeceram-se; ele retirou-se, dizendo:

— Desisti de vosso plano de ambição, senhor; retirai-vos de Campos em oito dias, pelo próximo vapor, ou sereis desgraçado!

Caí em meu sofá soluçando como a criança que pela primeira vez se separou do lar doméstico, onde ficaram seus pais, seus irmãozinhos, os seus brinquedos, as recordações do berço! Chorei, chorei muito; e, depois ajuntando as cartas dc Amália, as quais Patrocas deixara esparsas no chão, beijei-as; e, dominado não sei por que pensamento absurdo,queimei-as! As chamas, enroscando esse montão de papel que crepitava, enegrecia-se, pulverizava-se, pareciam também devorar a minha alma em um fogo mais veemente do que as labaredas que alimentam as forjas do inferno...

Decorria o prazo fatal; em vão tentei ver Amália, ou comunicar-lhe a minha posição. Joaquina, a escrava que me servia em semelhantes circunstâncias, havia desaparecido. Eu persistia!

Na oitava noite depois da ameaça de Patrocas, eu voltava de um café, onde fora procurar debalde distrair o meu espírito abatido. O tempo era medonho; o trovão estremecia as vidraças dos edifícios, que pareciam vacilar sobre os alicerces, e seus tetos eram iluminados de instante a instante pelos coriscos que dir-se-ia incendiá-los; a chuva derramava-se em catadupas.

Eu aproximava-me da minha casa quando, dobrando uma esquina, fui assaltado por cinco vultos que, silenciosos, principiaram a espancar-me, como se batessem com varinhas de junco os cachos de arroz em um paiol. Em vão bradei socorro; as vozes da tempestade abafaram os meus gritos de agonia; defendi-me; feri com a chave da porta na face o chefe desses assassinos, reconhecendo nele o alferes Pacheco, que vergou à impetuosidade do golpe; porém a minha coragem assanhou ainda mais a barbaridade dos meus inimigos, que me deixaram inanimado, provavelmente considerando-me cadáver...

Fiquei na verdade em péssimo estado: o meu corpo estava coberto de chagas profundas; perdi por alguns dias o uso da razão; uma febre constante e devoradora absorvia o resto das minhas forças; os médicos desenganaram-me; o povo interessava-se por mim, porém a polícia... a polícia tudo ignorava!

Um mês depois eu estava livre de perigo; e, quer em meus desvarios, quer durante a convalescença, nunca, nunca esqueci o nome de Amália; nunca maldisse de seu pai, mas também não se apagou dos meus sentidos aquela figura sinistra, que fora a primeira em derramar o meu sangue; e sequioso de vingança lembrava-me sempre do alferes Pacheco com tanto ódio quanto idolatrava a mulher que ele me roubava, empregando a vilania, a emboscada, o crime! Esquecê-lo seria possível? Despertei uma manhã possuído dessas ideias sombrias, e meditava em tal assunto quando percebi cair em meu quarto um jornal que seu distribuidor aí introduzira por baixo da janela.

Saí da cama em busca dessa folha; e, maldição!, percorrendo as suas colunas deparei com um artigo pomposo anunciando para o dia seguinte o casamento de D. Amália d’Amarante com o fazendeiro, alferes Pacheco de Sousa! Esses períodos que li me produziram o desfecho de pesadelo terrível, cujo efeito não sei descrever! O médico mais tarde surpreendeu-se da transformação moral em que me encontrou, cuja origem eu lhe ocultei. O meu plano estava formado; eu aguardava a noite para realizá-lo.

Com que ansiedade não a esperei! quanto não me custou ela a chegar! quanto não me pareceu vagarosa a marcha dos ponteiros do meu relógio, que fixamente eu encarava sobre o “guéridon”! com que sensação não recebi os dúbios reflexos da madrugada coados através das frestas, empalidecendo as paredes do meu aposento! com que prazer selvagem não ouvi o primeiro dobrar do sino da matriz chamando os fiéis para a missa! Esse toque imponente já me achou de pé, vestido de preto como o condenado que deve subir os degraus do patíbulo. Corri para a igreja, ainda invadida dos misteriosos ecos da solidão; penetrei cautelosarnente pelos corredores até alcançar o seu altar-mor; ocultei-me ali, por baixo dessas tábuas forradas de damasco e rendas, que sustêm a ara sagrada; assentei-me sobre um esquife; ouvi o murmúrio dos lábios das turbas suplicando a Deus paz e conforto; ouvi as orações do sacerdote, que cabiam sobre a minha cabeça; ouvi o sacristão vibrar a campa, o padre elevar a hóstia, o povo ajoelhar-se implorando a clemência do Filho de Deus e... insensível, persisti em o meu negro propósito, conservando-me inabalável, assentado no esquife, cerrando entre os punhos um revólver carregado com seis cápsulas.

A dor corrosiva apagara do meu seio todos os preceitos humanos, reduzindo-me à condição do canibal faminto, que espreita o momento de dilacerar a vítima imbele! O sopro da vingança alimentava os meus debilitados membros gastos pela moléstia e desespero. A crise da loucura ditava as minhas ações.

O casamento de Pacheco, contra o hábito geral, deveria efetuar-se às 9 horas da manhã, e eu queria assistir a ele; queria... matar esses noivos venturosos... e suicidar-me! Que alienação!

Ei-los, enfim, que entram na igreja; a cerimônia principia com todas as pompas próprias da fortuna vaidosa; vão receber a benção sacerdotal quando... qual espectro medonho, erguendo-se de um túmulo, eu surjo do meu esconderijo com o revólver em punho, apontando para Pacheco... Houve uma rápida confusão entre os assistentes; um suspiro magoado exalou-se do seio de Amália.

Meu Deus! como ela estava bela com as suas roupas de noiva, ou antes com a sua túnica de mártir!

Desmaiei...

Recuperei o uso das minhas faculdades em um hospital, em um quarto gradeado de ferro, onde me haviam encerrado como doido furioso! O que não conseguirão os homens do dinheiro!

Graças a empenhos valiosos rompi esta situação ridícula, sujeitando-me todavia a partir de Campos.

Parti; durante três anos errei pelas grandes capitais, não poupando nem a minha saúde, nem a minha pequena fortuna. Nos hotéis, levando urna vida licenciosa, tentara debalde afogar a lembrança amarga desse amor funesto. As rugas prematuras sulcaram a minha fronte; os meus cabelos pratearam-se; o meu coração forrou-se de uma camada de gelo. As mulheres de vida fácil presavam-me, porque eu desprezava os seus afagos, que no entanto comprava com generosidade. Era um verdadeiro Jacques Rolla; e, como ele, quando percebi que a minha bolsa murchava como murchara o meu seio, lembrei-me de um gatilho de pistola para cortar a minha miserável existência, e extrair o último suspiro proferindo urna maldição à sociedade, colando os lábios, frios pelo hálito da morte, contra os lábios da desgraçada filha dos lupanares que arrancasse da minha mão de cadáver a minha última peça de ouro, reservada para o meu transporte ao hospital.

Talvez ela, mulher perdida, tirasse ainda do seu indiferentismo uma lágrima que rolasse sobre o meu lívido semblante. Quem sabe!

Aproximava-se o momento decisivo de cumprir este cálculo quando recebi uma carta de Campos anunciando a morte de um amigo que me legara a sua fortuna, assaz considerável para dar-me mais alguns anos do desregrarnento. Corri a buscá-la...

Urna noite, apeara-me em uma fazenda, quatro léguas distante daquela para onde me chamavam os meus interesses, e aí pedira hospitalidade. Pouco depois, um pajem conduzia-me à sala de jantar para tomar alguma refeição; oh! surpresa! essa casa pertencia a D. Amália de Amarante, que ali se achava.

Ela reconheceu-me, corou, e... Como estava transformada! Cercada de dois filhinhos, ensinando-lhes a rezar; excessivamente gorda, com os seus mimosos pezinhos perdidos em um chinelão “de capoeiro”; com as lindas madeixas negligenciadas, atadas em coque; vestida com uma “bata” de chita escura, tendo em roda do pescoço um xale rajado de arabescos disformes; Amália, a poética Amália, que eu tanto adorara e por quem tanto padecera, era agora o protótipo da pesada matrona romana, da excelente mãe de família portuguesa.

Amália! lindo botão de rosa, tornaste-te flor descorada e bojuda, dando o teu néctar aos insetos repulsivos, à vespa inoportuna, ao besouro zangão! Amália!

A sua presença despertara as fibras do meu coração; e, preguiçosas como essas rodas de relógios que há muito arrastam mal e caprichosamente os ponteiros e de repente os tangem, e a campa principia a vibrar sem interrupção, assim elas se agitaram, e uma nova quadra de vida as viera afinar. Perderam as ilusões, que as paralisaram.

Regresssando à cidade, sacudi a poeira de uma mala, que desde a minha desventura ficara fechada no canto do quarto de um amigo, que a conservara fielmente. Ela encerrava o FIGURINO, retrato perfeito de Amália; quis vê-lo, para melhor comparar e apreciar essa alteração.

Oh ! desgraça! Esse quadro também experimentara a zombaria cruel do tempo; coberto de mofo, roído pelas baratas, desfeito pela umidade, o que restava dele? Nada; nada, senão as cores dúbias do vestido; os seus traços provocavam a irrisão! Deitei-o para o lado, e vim para a mesa redigir um anúncio para a LUX !, pondo em loteria o meu coração, valendo cada bilhete 500 em moedas novas de níquel. Juro que ele reverdeceu e ainda é digno de qualquer moça que seja bela, como era bela D. Amália d’Amarante, bela como era belo o meu FIGURINO!

Comprai bilhetes, minhas senhoras; comprai, porém cuidado com os papais! Não colhi a herança que me trouxera a estas ribas; ela submergiu-me em um intrincado labirito de acrimoniosas demandas, às quais renunciei em troca da paz de espírito; em compensação, adquiri o hábito do trabalho, e... que decepcão! Recordo-me que a LUX! não aceita anúncios e propagandas... Estou logrado, tanto melhor; porque não me seria difícil deparar com um segundo Patrocas, encadernado em maior orgulho e ambição...

Farwel ! farweIl ! farwel!

F. GIL

Campos, 10 de dezemnbro de 1874.

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* Conto filiado à estética romântica, publicado como folhetim na Revista LUX!, Rio de Janeiro, 1874, pp. 146-8, 162-5 e 178-82.
** Francisco Gil Castelo Branco (Livramento, atual José de Freitas – PI, 1848, Marselha - França, 1894) foi diplomata, jornalista e escritor (romancista e contista filiado à estética romântica). Formado em Letras na França, residiu no Rio de Janeiro, onde colaborou em vários periódicos, como Revista Lux!, e jornais, como Gazeta Universal e Diário de Notícias. Exerceu o cargo de cônsul geral do Brasil em Assunção (Paraguai) e em Marselha (França). Publicou, em folhetins, A pérola no lodo, romance humorístico (1874), Um figurino, conto (1874), Contos a esmo (1876), Os gansos sociais (1878), Ataliba , o vaqueiro, conto (1878), Pobreza não é vício (1884).
*** Atualização ortográfica e notas por Airton Sampaio, escritor e professor no Departamento de Letras da Universidade Federal do Piauí. Foram mantidas as grafias de certos nomes próprios, como Goytacazes.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

PIAUÍ ENTRA EM FIME À FORÇA

Vi Onde Está a Felicidade?, comédia romântica de Carlos Alberto Ricceli, o marido, com Bruna Lombardi, a esposa, no papel principal. O filme é fraquinho, mas, se não se tem nada para fazer, dá pra ver.

O problema é o Piauí, que entra à força na fita, num corte abrupto de Santiago de Compostela para a Serra da Capivara, com direito até a alguns segundos lastimáveis de João Cláudio Moreno, que ninguém merecia. É escancarado que esse apêndice da Serra da Capivara não estava no roteiro original e que, já terminado o filme, foi lá empurrado apenas para descolar uma grana do WM, assim como Frank Aguiar já o havia feito com WD. Perdeu a película, que deixou de findar na cena certa, em nome de, dizem, 500 mil reais, e não ganhou o Piauí, que adentra o enredo como um óbvio penetra, somente para fazer-se uma propagandazinha.

O pior de tudo é que um puxa-saco do governo escreveu no Diário do Povo que se Barcelona pôde, com Vick, Cristina, Barcelona, patrocinar Woody Allen, por que não pode o Piauí? Primeiro é que o diretor de Onde Está a Felicidade? não é Woody Allen e, segundo, Barcelona não aparece na marra no filme, depois de ele pronto. Haja bajulação!

Enquanto isso, a portentosa obra poética de Leonardo da Senhora das Dores Castello Branco jaz no limbo do esquecimento, sem nenhuma reedição. E nem se precisa de 500 mil pra reeditá-las... Eita, Fazenda Piauí difícil!!!