terça-feira, 31 de maio de 2011

"SOMOS TODOS INOCENTES", DE O. G. RÊGO DE CARVALHO: REGIONAL, MAS NÃO REGIONALISTA*

Glaucia Alves Carneiro**
Nayron Klecyo Pereira da Silva
Vera Lúcia Macêdo da Silva

O presente artigo tem como objetivo mostrar que ‘Somos todos inocentes’ de O. G. Rêgo de Carvalho, é um romance regional e não regionalista, apontando três aspectos que diferenciam o primeiro do segundo: ser um romance psicossocial, não se valer de temática como a seca, que apresenta o homem em conflito com a terra, e não mimetizar a linguagem típica da região, predominando a linguagem padrão.

‘Somos todos inocentes’, de O. G. Rêgo de Carvalho, é ambientado em 1929 em Oeiras, que serve como pano de fundo para narrar a história de personagens que condensam uma carga de conflitos consigo mesmos e com os outros. O romance revela uma Oeiras com seus costumes provincianos ainda supervalorizados pela sociedade da época, embora já em decadência.

Com isso, O. G. Rêgo de Carvalho remonta no romance a sociedade oeirense de 1929, com seus casarões, sintetizados na figura do Sobrado, festas embaladas pela valsa e pelo samba (como mostrado na feita para Raul), ritos fúnebres, com sermão do padre, velhas carpideiras rezando ladainhas e viúvas chorando lamentações vazias, falação da vida alheia, enfim, manifesta-a tenuemente, para ali desenrolar toda a narrativa e as peripécias que a envolvem.

Segundo George Stewart, apud Afrânio Coutinho (2004, p.235), toda obra de arte é regional, no sentido mais largo do conceito, quando ambientada em um local particular. O. G. Rêgo de Carvalho localiza a história em Oeiras, mas universaliza o romance ao deixar em evidência a introspecção dos personagens, sublinhando seus pensamentos e angústias advindas de antigos embates familiares, do ciúme e da ambição, estes dois últimos bem retratados na figura de Amparo, que para casar-se era capaz de passar por cima dos sentimentos da melhor amiga, Dulce, e ainda saborear-lhe o sofrimento.

Nesse aspecto, pode-se dizer que o romance já não segue o cânon do regionalismo, que se presta a pintar a cor local (Coutinho, 2004) e o ‘modus vivendi’ de uma dada região de forma prioritária, deixando o íntimo das personagens em segundo plano. Contudo, o que ocorre em ‘Somos todos inocentes’ é o avesso: as personagens e seus dilemas estão em primeiro plano.

Quanto ao fato de o romance não se valer da temática da seca, bem como não apresentar o homem em conflito com a terra ou dela sendo vítima (Coutinho, 1996), como em regra o fazem os regionalistas, O. G. Rêgo de Carvalho “quebra”, mais uma vez, “a linha do regionalismo” (KRUEL, Kenard, Fortuna Crítica, p.49). Aliás, o autor, em resposta a Raul Lima, no Diário de Notícias (KRUEL, Kenard, Fortuna Crítica, p. 49), diz que “o Nordeste não é apenas secas e cangaço, e que ele, como escritor, devia ter outros compromissos sem ter que imitar seus antecessores.”

Sob esse aspecto, vale dizer que a preocupação do autor não é denunciar as mazelas da terra, mas mostrar uma Oeiras decadente e hipócrita. ‘Somos todos inocentes’ evidencia o homem em conflito com o homem e consigo mesmo, sempre jogando a culpa nos outros, quando, na verdade, os ‘outros’ são o próprio ‘eu’ não admitido.

Quanto à linguagem, é usada no romance predominantemente a maneira padrão. Isso é talvez explicado pela formação clássica de O. G. Rêgo de Carvalho. Além do mais, o romance se passa em uma Oeiras arcaica, que procura sustentar tradições, e nada melhor que expressar essa condição através de uma linguagem ainda presa a um português lusitano. O autor não faz isso de modo ingênuo, pois tem consciência de que aquela sociedade era (e talvez ainda seja) apegada ao passado mais que ao presente e ao futuro.

É necessário dizer ainda que O. G. Rêgo queria escrever um romance que fosse recepcionado não só no Piauí, mas também fora do estado. Sabendo disso, utilizou-se de sua formação clássica para que o seu romance fosse lido e identificado não só com a cultura do Piauí, mas com os seres humanos em conflito. É o que se pode perceber no trecho seguinte:

"- Por favor, acuda!
Reconhecendo a voz de Dulce (“tem uns seios lindos”), descerrou a janela, deslumbrado em vê- la de chambre.
- Paizinho está morrendo!
[....]
Daí a momentos o farmacêutico saiu e acompanhou-a. Cansado de impelir o ventre enorme, ia-se arrastando atrás, contente em ver-lhe as formas do corpo, quando o vento bulia com o chambre." (Ficção reunida, p. 115).

O que se vê no trecho é o rigor sintático da linguagem, que faz menção ao léxico regional (‘acuda’, ‘bulia’, ´paizinho’), mantendo-se um equilíbrio entre o que pode ser sutilmente identificado com a região de Oeiras e o que pode ser universalizado. Segundo Lúcia Miguel-Pereira (1973), só pertencem ao regionalismo as obras que conseguem fixar os tipos, costumes e linguagem locais, de modo que os hábitos de vida se discrepem dos da civilização niveladora. O romance ´Somos todos inocentes´, apesar de descrever aspectos geográficos da região, como o rio Mocha e a igreja da Vitória, e de se reportar a costumes da Oeiras de 1929 e até de trazer na linguagem uma certa identidade regional, consegue fazer isso não peculiarizando esse modo de vida, mas, no feliz dizer de José Afrânio Moreira Duarte (Fortuna Crítica, p. 111), sendo uma ficção que pode desenrolar-se em qualquer lugar do interior do Brasil ou fora dele, ganhando, portanto, caráter universal.

Airton Sampaio, na apresentação do livro de Kenard Kruel, ‘O. G. Rêgo de Carvalho- Fortuna Crítica’, afirma que O. G. não faz uso do regionalismo estreito, que se limita à superfície das coisas, e não explora o exótico do lugar e dos costumes, mas o singular e ricamente diferente. O. G. Rêgo não deixa, assim, de mencionar o regional, mas prioriza a vertente psicossocial, e essa mesclagem dos dois aspectos é que faz de ‘Somos todos inocentes’ um romance regional não regionalista.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARVALHO, O. G. Rêgo de. Somos todos inocentes. In. : O. G. Rêgo de Carvalho: ficção reunida. 3 ed. Teresina: Corisco, 2002.
COUTINHO, Afrânio dos Santos. A literatura no Brasil: era realista/era de transição. 7. ed. São Paulo: Global, 2004.
DUARTE, José Afrânio Moreira..In: KRUEL, Kenard (org). O. G. Rêgo de Carvalho: fortuna crítica. Teresina: Zodíaco, 2007
KRUEL, Kenard. “ “. In: KRUEL, Kenard (org). O. G. Rêgo de Carvalho: fortuna crítica.
MIGUEL-PEREIRA, Lúcia. História da literatura brasileira: XII - Prosa de Ficção: de 1870 a 1920. 3 ed. Rio de Janeiro/J. Olimpio; Brasília/INL, 1973.
SAMPAIO, Airton. “Apresentação”. In: KRUEL, Kenard (org). O. G. Rêgo de Carvalho: fortuna crítica. Teresina:: Zodíaco, 2007.
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*Artigo produzido na disciplina Literatura nacional: autores piauienses, ministrada na Ufpi, em 2011/1, pelo prof. Airton Sampaio.
**Estudantes de Letras na Ufpi.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

O ERRO DA UFPI: SEM PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR COM GARANTIA DE CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA NÃO SE PODE EXONERAR OU DEMITIR SERVIDOR, MESMO EM ESTÁGIO PROBATÓRIO

(...)

"Passamos então a analisar a possibilidade de exoneração no estágio probatório. Para que a exoneração ocorra, deverá a Administração Pública, pouco importando se o servidor é federal, distrital, estadual ou municipal, observar os seguintes requisitos:

1) Contraditório e Ampla Defesa, através de um processo administrativo (art. 5º, LV da CR/88);
2) Princípio da Motivação.

O servidor que tiver uma avaliação insatisfatória no estágio probatório não poderá ser exonerado automaticamente, pois tem o direito constitucional ao contraditório e à ampla defesa, através de um processo administrativo. Tal direito visa afastar avaliações mentirosas, perseguições funcionais e reduzir o arbítrio da autoridade, sendo, portanto, o limite da discricionariedade administrativa o abuso de poder.

O Supremo Tribunal Federal, ao julgar reiteradamente questões relativas à exoneração e demissão de servidores, editou os verbetes de súmula números 20 e 21, com a seguinte redação:

"Verbete nº. 20 - É NECESSÁRIO PROCESSO ADMINISTRATIVO COM AMPLA DEFESA, PARA DEMISSÃO DE FUNCIONÁRIO ADMITIDO POR CONCURSO.

Verbete nº. 21 - FUNCIONÁRIO EM ESTÁGIO PROBATÓRIO NÃO PODE SER EXONERADO NEM DEMITIDO SEM INQUÉRITO OU SEM AS FORMALIDADES LEGAIS DE APURAÇÃO DE SUA CAPACIDADE."

Depois de assegurado o direito de defesa e do contraditório e ratificado que o servidor não merece continuar no serviço público, a Administração Pública passa a ter o poder-dever de exonerá-lo. Trata-se de um ato vinculado.

Tal ato administrativo deverá ser devidamente motivado com a indicação dos fatos e fundamentos jurídicos de forma explícita, clara e congruente, podendo consistir em declaração de concordância com fundamentos de anteriores pareceres, informações, decisões ou propostas, que, neste caso, serão parte integrante do ato.

Para corrigir a falha da Administração Pública em decorrência da não observância das regras acima, deverá o servidor público exercer o seu direito de petição (art. 5º, XXXIV da CR/88) junto ao próprio Estado ou provocar o Poder Judiciário, através de uma ação de procedimento ordinário ou de obrigação de fazer com pedido de antecipação de tutela ou ainda mandado de segurança, a depender do caso concreto."

BERNARDO BRANDÃO COSTA, advogado especialista em Concursos Públicos e Servidores.

Fonte: http://www.pciconcursos.com.br/consultoria/estagio-probatorio

quarta-feira, 25 de maio de 2011

A INDISTINÇÃO NARRADOR/AUTOR EM "ATALIBA, O VAQUEIRO", DE FRANCISCO GIL CASTELO BRANCO*

Carla Adriana de Sousa Barbosa**
Layla Aristiany Nunes Maia
Raimundo Silva do Nascimento

Na literatura, a linguagem sempre foi elemento determinante da caracterização de uma época, região, estilo e personagens. No conto Ataliba, o vaqueiro, de Francisco Gil Castello Branco, cuja temática é a seca no interior do Piauí, há, nem sempre distintas, a linguagem do narrador e a das personagens.

Na fala do narrador, percebem-se traços tendentes ao registro da cultura, léxico e sintaxe lusitanos, senão europeia, com a utilização de termos do vocabulário do próprio autor. Na fala das personagens há, por sua vez, uma tentativa de registro da oralidade e dos costumes empregados na época e região, enriquecida com o uso, muito frequente, de onomatopeias.

O autor, como já dito, estabelece uma confusão entre sua fala e a do narrador. Essa afirmação é comprovada, por exemplo, pela fala de Deodata, transpassada pela influência lusitana por ele sofrida, o que se nota nos diálogos com Teresinha, em que há uma aplicação da norma culta na construção frasal. Deodata é uma senhora idosa, sem escolaridade e residente no interior da província do Piauí, não sendo a colocação pronominal enclítica e o uso do verbo na segunda pessoa do singular usuais do povo daquela região e nível social.

“- Cala-te tola! Gritando, interrompeu Deodata (...)” (p. 78)

“- Então, rapariga, que esperas? Estás cochilando? Tens medo de ir à cozinha? (...)” (p. 83)

Ademais, no decorrer do texto, ocorrem, na fala do narrador, comparações baseadas mais no universo da cultura europeia que no da sertaneja do longínquo Piauí. Vejam-se as feitas com um costume francês, um ponto turístico italiano e um instrumento musical do folclore e dança espanholas:

“Depois arranjou a rodilha na cabeça como um coque parisiense (...)” (p. 45)

“Os cabelos... em cocoruto... inclinados qual outra torre de Piza (...)” (p. 47)

“(...) com um estrepitoso alarido, batendo castanholas com o dedo, sapateando ao redor do africano (...)” (p. 53)

Também, porque idealizado, o narrador apresenta um perfil do sertanejo bem diferente da realidade, numa espécie de “romantização” dessa figura, o que denuncia o forte romantismo de Ataliba, o vaqueiro:

“Ataliba era moço, tinha a figura atlética e a fisionomia cheia de franqueza. O seu trajar caprichoso indicava desde logo que ele era vaqueiro e enamorado.” (p. 43)

“Teresinha era uma morena sedutora. As suas formas, delineando-se em modesta saia de chita e os seios arfando sob alva camisa orlada (...). As tranças espessas, escuras e lustrosas como fios negros de seda (...)”. (p. 41)

Ainda é pertinente observar que Francisco Gil utilizou-se de estratégias como o lirismo, quer na comparação das sertanejas com as flores, quer no descrever o apego à terra, quer no dizer da falta de chuva:

“As filhas do sertão são como flores campesinas, a arte não lhes realça o valor (...).” (p. 41)

“Eram os últimos agregados da fazenda (...). A execução desse ato era para essa pobre gente um poema de heroísmo, em cada árvore, em cada pedra, em cada recanto dessas campinas desoladas deixavam uma reminiscência, uma saudade, um companheiro de infância – um pedaço d’alma!” (p. 71)

“Na alegria ou na dor dava curso aos seus sentimentos, traduzindo-os em versículos (...). Assim, de repente desabafou um largo suspiro dos pulmões e soltou a voz.” (p. 73)

Muitas vezes, são as onomatopeias e as cantigas que revelam um pouco do linguajar do narrador/autor, conferindo musicalidade ao conto:

“– Té! té! té! té!...”
“- Gru gru gru gru! Gru gru gru gru!”
“– Coré!... Coré!... Coré!...” (p. 59)

“(...) marchando ramram dos pandeiros, ao tilintar das violas (...)” (p. 62)

“A flor do – piqui – é branca,
do – bacuri – encarnada,
a flor do jambo é bonita,
mais bonita é minha amada” (p. 63).

Não se pode perder de vista que o que se quer averiguar aqui é, principalmente, de que forma o narrador se identifica no texto como o próprio Francisco Gil. No caso, o autor esconde-se atrás do narrador e, encoberto por este, fala. Ou seja, escondido sob o véu do narrador e das demais personagens, o autor de Ataliba, o vaqueiro pôde proferir o seu discurso romantizado, disso, porém, se esquecendo, por incontáveis vezes.

Assim, na tentativa de constituição de uma identidade regional por meio de um discurso característico do sertanejo, a voz do narrador confunde-se, não raro, com o pensamento e linguagem do autor, um intelectual da época e diplomata de carreira, indicando influências da formação acadêmica e da convivência dele com a cultura europeia. Até mesmo pela falta de convivência direta com a realidade linguística do Piauí, faltou coerência entre as falas próprias do autor e as das personagens, estas bastantes irreais, o que se justifica, talvez, pela distância geográfica e temporal entre Francisco Gil e sua Província natal. O autor imprime, pois, ao discurso do narrador, sua linguagem lusitana e sua visão de mundo eurocêntrica, e isso é, evidentemente, uma falha de construção literária.

Bibliografia
CASTELLO BRANCO, Francisco Gil. Ataliba, o vaqueiro, Hermione e Abelardo, A Mulher de Ouro. 2. ed. Teresina: APL/UFPI, 1994.
MOURA, Francisco Miguel de. Literatura do Piauí. Teresina: APL/BNB, 2001.
TERRA, Ernani. Linguagem, língua e fala. São Paulo: Scipione, 1997.
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*Artigo produzido na disciplina Literatura Nacional: autores piauienses, ministrada na Ufpi, em 2011/1, pelo prof. Airton Sampaio.
**Estudantes de Letras na Ufpi.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

A PROSA ROMÂNTICO-REALISTA DE CLODOALDO FREITAS EM "OS BANDOLEIROS"*

Éllen Fernanda Vaz dos Santos**
Francisca Marciely Dantas
Geisiane Dias Queiroz
Safira Ravenne da Cunha Rêgo

Clodoaldo Freitas (Oeiras, 7/9/1855, Teresina, 29/6/1924) foi bacharel em Direito (Faculdade de Recife), cronista, poeta, novelista, romancista e tradutor. Segundo Teresinha Queiroz (1994), percorreu ele boa parte do Brasil, com forte atuação na imprensa periódica do Piauí, Maranhão e Pará, tendo sido um dos fundadores da Academia Maranhense de Letras (1908) e da Academia Piauiense de Letras (1917). Publicou diversas obras de ficção, em livros e folhetins, dentre as quais Os bandoleiros.

A novela Os bandoleiros, publicada em 1917, apresenta características que resgatam o estilo de dois períodos literários essencialmente distintos: o Romantismo e o Realismo. Apesar de serem escolas que se consolidaram em épocas diferentes no contexto nacional, nesta obra de Freitas ocorre certo paralelismo entre os dois estilos. Nesse sentido, a obra em questão aborda temas sociais, porém, em alguns momentos, a sua escrita peculiar denuncia marcas românticas. No decorrer de toda a trama novelística tem-se o embate, tanto temático quanto textual, entre aspectos que remetem ao ideal e ao real na tessitura narrativa. Com base nessa afirmação, iniciar-se-á a análise crítica d’Os bandoleiros, discutindo inicialmente traços que caracterizam o realismo.

O seguinte trecho destaca características realistas, pois descreve a feira de maneira objetiva e racional, fazendo-se valer do aspecto crítico. Pode-se ressaltar, inclusive, uma possível semelhança com a descrição que Aluísio Azevedo faz no terceiro capítulo de O cortiço, sugerindo até uma intertextualidade:

"O domingo amanhecera claro, fresco, de sol radiante. O movimento da feira começou cedo. Matutos escanchados no meio de duas grandes sacas de farinha, entravam por todos os lados. Por baixo das mangueiras iam sendo arrumadas as sacas de farinha, penduradas bandas de porco, amontoados rumas de pirarucu e de peixe seco, sacos de cereais, caixões com rapaduras, bancas com bules e xícaras de café [...]. Às nove horas já havia muita gente reunida, na azáfama da luta pelo pão cotidiano e na labuta do pequeno comércio, cada qual gritando e exaltando as bondades e a barateza de sua mercadoria. Mulheres em trajes domingueiros passavam em grupo umas atrás das outras. Os cavalos, amarrados nos troncos das mangueiras ou nas frentes das casas, remoíam tranquilamente as mochilas de milho" (FREITAS, 2009, p. 22).

Pode-se ainda ressaltar o fragmento em que o narrador descreve as chagas sociais da vila: “Na anarquia em que vive o Pará, sem governo e sem lei, a vida naquele recanto ameno seria impossível sem a observância desse princípio moralizador e mantenedor da ordem” (FREITAS, 2009, p. 14). Segundo Massaud Moisés (2008, p. 261), “o romance realista vê esteticamente os problemas sociais”, como também “o drama das personagens resulta, não raro, da educação e de outros fatores sociais e morais” .

Assim, Clodoaldo buscou enfatizar em Os bandoleiros o homem comum, com seus problemas corriqueiros e sociais, apresentando de maneira bem descritiva os aspectos físicos que o qualificam, característica marcante do realismo. Os personagens que compõem os núcleos da trama são reconhecidos por suas atribuições físicas e, na maioria das vezes, têm os seus defeitos deflagrados, como se observa neste perfil:

"[...] D. Noêmia tinha certos defeitos, que mencionou, e que o incompatibilizavam com qualquer mulher.
- Não tolero mulher de peitos de surrão.
- Eu, mulher de pernas finas (FREITAS, 2009, p. 20).

Em alguns momentos do texto se esquece a mulher idealizada e predomina a decadência da figura feminina. A respeito disso, tem-se a história de seu Chico e a mulher que ele diz ter sustentado, personagem que em momento algum recebe um nome, sendo tratada apenas por “mulher”:

"- A senhora não vale 300 mil-réis, quanto mais sua roça [...].
- O senhor morava comigo e tinha obrigação de trabalhar para mim e sustentar-me. Para isto, é que eu lhe dava meu corpo e lhe servia de criada. O senhor me dava alguma coisa por isto?" (FREITAS, 2009, p 29).

No que diz respeito à temática, o autor faz forte críticas ao caráter indiferente do povo às questões políticas, numa observação quase naturalista:

"Riam-se alegres, já esquecidos das próprias amarguras. O caráter do brasileiro é assim. Somos desmemoriados e indiferentes até para a nossa própria desgraça. Iludimos nossas lágrimas com risos. Somos incapazes de grandes comoções morais, de heroísmo, de paixões violentas. Nos momentos mais vivos e solenes, uma gargalhada muda a tragédia em comédia" (FREITAS, 2009, p.60).

A sociedade de Igarapé-Açu, cidadezinha amazônica retratada no livro, é cercada de mazelas sociais e problemas políticos, revelando tipos sociais e vícios, que o autor mostra sem camuflagem.
Outro tema abordado no livro pelo autor é o amor. E, nesse paralelo entre o romântico e o realista, isso ganha notoriedade. Os amores intensos e sem consistência são criticados por meio da instituição do casamento, que na novela é retratado como sendo frágil e vulnerável:

“A desolação das três moças foi indescritível. O Anginho explicava às cunhadas que a causa do abandono delas foi a exigência diária do casamento religioso, e que elas mesmas declaravam que o casamento civil é mancebia” (FREITAS, 2009, p 75).

O Realismo volta-se, no caso, para o comum e trivial, girando em torno do casamento frustrado. A instituição, venerada no Romantismo, torna-se desvalorizada. Observam-se porém, na novela de Clodoaldo Freitas, ecos de Romantismo, como nas descrições feitas a seguir, em que a natureza é exaltada em sua exuberância:

"O luar embaciado tornava a noite muito triste e fria. Chovera torrencialmente à tarde. A lua apareceu num grande lago de nimbos e derramava pela vila adormecida uma branca claridade melancólica" (FREITAS, 2009, p. 15).

Massaud Moisés (2008) afirma que a natureza no romantismo é individualizada e personificada. Tem-se, assim, n’Os bandoleiros:

"[...] o povoado, comprimido dentro da grande mata, não tem horizonte, a não ser para o lado do rio. As matas amazônicas são tristes, despovoadas de pássaros. As arvores seculares, altíssimas e de frondes insignificantes, tomam a poesia do espaço. O silêncio dessas matas, onde não canta um pássaro, é acabrunhador e lúgubre. Nelas não vicejam as flores e trepadeiras silvestres, tão formosas e de cores tão variadas" (FREITAS, 2009, p.46).

Em contraponto à mulher de defeitos realistas, há Sebastiana que o narrador descreve em atitude romântica, aproximando-a das ninfas:

"Sebastiana, que tinha dezessete anos, era realmente formosa. Um pouco baixa, morena, olhos negros belíssimos, dentadura esplêndida, farta cabeleira preta. Era uma mulher de beleza ideal. Seu riso era suave, sua voz fascinadora. Uma simpatia celestial ressumava de seu rosto encantador. A bondade de seu gênio a fazia adorada de quantos a conheciam" (FREITAS, 2009, p.49).

Contrapondo-se à decadência e como consequência do amor percebem-se alguns trechos da novela que remetem ao amor idealizado:

"- Tu me amarás sempre assim? – perguntava a Tacy ao marido, beijando-o sofregamente.
- Sempre assim não, porque pretendo te amar muito mais; porque cada vez mais descubro em ti nova beleza e novas graças.
- Como te amo! – murmurava ela.
- Como te amo! – murmurava o Tosta.
A mesma coisa se passava com os outros casais" (FREITAS, 2009, p. 73).

Outro aspecto observado é a ênfase que Clodoaldo dá à tradição, costumes e linguagem populares. Segundo Lígia Cademartori (1997, p. 41), “com o Romantismo, o tema local ganha proeminência e cabe às descrições darem conta da exuberância da paisagem e da curiosidade e peculiaridade dos costumes do País”. Sendo assim, revelam-se, nos trechos seguintes, referências ligadas à cultura de Igarapé-Açu: brincadeiras, jogos de prendas, sabedoria popular, linguagem:

"Uma voz bradou:
- Vamos às prendas.
- O coito-coutinho?
- A cabra-cega?
- O amigo ou amiga?
- O amigo ou amiga – disse D. Anica.
- Pois vamos" (FREITAS, 2009, p. 17).

"Era a primeira vez que o Dr. Perneta recebia publicamente semelhante reprimenda. Chispando ódios, o juiz tocou o carro para a casa, debaixo de enorme surriada. O Sanico ficou radiante e vitorioso.
- Este rapaz é macho – dizia um.
- É homem – murmurava outro.
- Era o que o Dr. Perneta precisava há muito tempo. Agora ele deixa de tanta valentia.
- Para doido, doido e meio.
O prefeito bravateava. Os elogios caíam sobre ele.
- O Perneta saiu dando azeite às canadas.
- Bem feito, afinal uma pedra lhe bateu à cabeça.
- Bem feito.
- Arre, canalha!" (FREITAS, 2009, p. 23-4).

Leve-se em conta que o período em que o autor escreveu a novela não mais correspondia às estéticas que utilizou, mantendo-se ainda preso ao passado literário brasileiro. E, como visto, Os bandoleiros apresenta características tanto da estética literária realista quanto da romântica.

BIBLIOGRAFIA
CADEMARTORI, Ligia. Períodos literários. São Paulo: Ática, 1997.
FREITAS, Clodoaldo. Os bandoleiros. Pesquisa e organização de Teresinha Queiroz. Apresentação de Eugênio Pacelli Leal Bittencourt. Imperatriz, MA: Ética, 2009.
MOISÉS, Massaud. Introdução à literatura portuguesa. 38. ed. São Paulo: Cultrix, 2008.
QUEIROZ, Teresinha. Os literatos e a República: Clodoaldo Freitas, Higino Cunha e as tiranias do tempo. Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 1994.
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*Artigo produzido na disciplina Literatura nacional: autores piauienses, ministrada na Ufpi, em 2011/1, pelo prof. Airton Sampaio.
**Estudantes de Letras na Ufpi.