... Continuação [do número 4]
CAPÍTULO IV***
A humanidade é fraca e essa fraqueza se revela sobretudo em suas aspirações, frocos balsâmicos de fumaça que se elevam para regiões fantásticas, em cujo horizonte a felicidade se suspende, atraindo-a com força magnética!
O comando e seus espinhos; a fortuna e suas incoerências; o saber e suas locubrações, eis seus principais meios de sedução, sedução irresistível, deslumbrante, mesmo necessária, sobre a qual nos arrojamos delirantes, nós, insensatas mariposas! Ligeiras gotas de orvalho abandonando a terra, nós abandonamos o ponto de partida. cheios de esperança, e quando julgamos atingir a raia de peregrinação, a encontramos confundindo-se com ele, formando dois mistérios terriveis que sustêm as alças de um túmulo branco com a negra inscrição do monge gravada sobre as portas de Roma: “Umbra et nihil!” [“Sombras e Nada!”], tendo em remuneração de tantas fadigas sete palmos de lama para o nosso repouso eterno!
São essas as minhas crenças, disse o Dr. Ferraz, entornando de um fôlego um copo de champanha, acrescentando:
— Nasce o império, da escravidão; a riqueza, da miséria; a ilustração, da ignorância; a beleza, da fealdade; a cor branca, da cor preta; a luz, das trevas; e, separando-se o efeito da causa, o que seriam dessas quimeras que louvamos tanto?
Quando o desengano, oceano furioso, sobre elas precipita suas ondas, envolvendo-as em seu fluxo e refluxo, um grito uníssono, pertencente a todas as classes, não troa além este eco duvidoso: “Onde está a felicidade?!” Ah! se pudéssemos ler sobre as frontes o que se traz no coração quantas pessoas invejáveis não seriam dignas de lástima! Creio, meus amigos, que assim exclamara Dante, o poeta que tanto sentira.
Se nao é ficção o espiritualismo, se é possivel a imortalidade da alma, se crêssemos, como as beatas, nos passeios noturnos dos habitantes de além-túmulo, quais as exprobações que para nós teriam os espectros de nossos avós, surgindo de sob esta mesa; eles que consideravam o homem mais venerável da aldeia aquele que tinha a noite mais serena; eles que consideravam o sono como sendo o mais precioso de todos os tesouros, e que se revestiam de toda a gravidade, cem vezes por dia, proferindo a seus vizinhos este cumprimento patriarcal: “Como. passou a noite?”
Se dirigíssemos a Espiridião esta mesma pergunta, qual seria a sua resposta, se o amor próprio lhe concedesse franqueza? Ele diria, certamente, que um condenado, percorrendo com passos vacilantes os ladrilhos de sua masmorra, contando os poucos momentos que lhe restam de vida à espera do patíbulo, se porventura há vida nesses momentos, não sofre mais do que ele sofrera depois de sua malograda esperança de convencer Mlle. Celline.
Percorrendo o seu aposento como o 1eão ferido no flanco, na jaula estreita; parando de quando em quando defronte do grande espelho do seu guarda-roupa, ele parecia surpreso, não vendo ali no vidro o seu retrato reproduzido com cabelos brancos sobre um corpo raquítico; mas, se na verdade um fraco calor lhe cobria as faces, o abdõmen, o abdôrnen desproporcionado, o abdômen que ele outrora tanto afagava não diminuíra uma só linha em sua monstruosidade, o que lhe fazia recuar de horror, tapando o rosto com as mãos comose fossem elas espesso véu, e perante essa catástrofe deferia em ai! dolente às palavras de Mlle Celline: “Emagrecei primeiramente!”, prosseguindo com seu passeio desabrido em volta do seu salão. “Como passara a noite, Mlle. Celline?”
A bela parisiense subira mansamente as escadas de cinco andares, e lá bem longe, mais próxima do céu do que da terra, abrira sem barulho uma porta e penetrara em um quarto de “mansarda”, onde tudo se revestia desse ar sombrio da pobreza.
Nas paredes, forradas de um papel sujo, talvez a primeira prova que saíra das oficinas do inventor dessa manufatura em 1761, pendia um quadro pequeno representando a Virgem, já tão denegrido e tão alterado pelas linhas que de ordinário traça a umidade que só a devoção, e uma devoção sincera, se curvaria diante dessa imagem, cujo aspecto seria para um espírito “profano” o da Vênus dos Hotentotes em grande gala!
Oh! Doce conforto da religião, preceitos sublimes de almas puras, por que te apartastes de mim? Por que não me prestais mais aquela linguagem misteriosa que encontrava na minha meninice, ao declinar do sol? Por que já não sei crer, como Mlle. Celline, às sombras daquele quadro?
Aos frouxos reflexos de uma candeia, com os vastos cabelos flutuando sobre as espáduas de nácar, com as mãos postas e os olhos úmidos e fixos sobre aquele quadro, ela rezava sempre muito, antes de embrulhar-se nas rotas cobertas de sua mísera cama; e então, como diz Homero: Ela não se assemelhava à filha de um mortal, mas de um deus! No entanto, contígua à sua cama, em uma outra quase tão mesquinha, apesar dos adornos que seus desvelos encontraram para ali, repousava um velho inválido. Era seu pai.
Certa de que ele estava em paz, o que respeitamos por enquanto, Mlle. Celline, depois de haver orado, quis em vão cerrar as pálpebras, que o pensamento sustinha abertas, pesando os acontecimentos do dia.
O “Petit-Sponser” sobretudo a tinha em xeque-mate. Ela meditava seriamente sobre a paixão de Espiridião. Ela a teria compreendido ou guardava a sua recordação como a lembrança de um episódio alegre, colocando-a na lista em que são inscritas as declarações insípidas que caem do céu das bocas sobre as línguas de víboras de pelintras enfadonhos?
Na atitude respeitosa, quase infantil; na voz trêmula e duvidosa, na constância varonil de Espiridião, ela sondava mais do que um brinco, mais do que um capricho brutal, mais do que uma audácia de mocidade, e quase tinha remorsos de haver zombado daquele homem bem trajado que, talvez em posição de amarrotar sedas finas, as desprezava pelos seus andrajos; e atencioso, humilde em sua presença, reparava na sua formosura, apesar de sua pobreza.
Eis o que Mlle. Celline confidenciava com o seu travesseiro, se mais não ousamos dizer.
Quanto a Mr. Gilliard, acordara bradando socorro contra o “salteador espanhol”, e tivera pesadelos que o próprio Shakespeare nunca chegaria a esboçar.
Mlle. Alvina acendera com a carta de Taquin uma fogueira em seu juízo e adormecera ao fim, guardando-a entre as mãos, como se fosse um manual, invocando o auxílio dos profetas para essa interpretação difícil, mais difícil do que a das “espigas” de Faraó!
Mr. Baudart, que dera excelente trato ao seu malfadado estômago, roncava com os ouvidos sobre as três moedas de ouro, ouvindo em sonho uma marcha triunfal, executada por uma orquestra celeste, e milhares de vozes sonoras proclamando-o rei do Peru!
Taquin, que morava ao lado de Espiridião, notando a sua inquietação, não se incomodara a princípio, pensando, talvez com bom fundamento, que a brisa fresca da noite e a fadiga o demandassem sem demora; porém, desenganado ao fim, irritado pelas contínuas estocadas que os vizinhos com cabos de vassouras, ou instrumentos aparentados, despachavam contra o seu assoalho, por engano, e contra o de Espiridião, impondo-lhe silêncio, resolvera calçar as chinelas, vestir o chambre, concertar a carapuça e sossegar o seu amigo que, sem rebuços, agradeceu sua visita com uma narração minuciosa dos acontecimentos. Taquin, que tragava ainda um pouco de mau humor , o consumia todavia em prenhe risada, em consequência da entoação lastimosa e remate pitoresco com que Espiridião coseu a sua aventura, repetindo a exigência que lhe impusera a parisiense: “Emagrecei primeiramente!”.
O caráter humano tem ora a imobilidade do mar em calmaria, ora a impetuosidade das tormentas. Às vezes, ostenta a placidez da alva em primavera, e com varinha magnética, como a de Moisés ferindo a catadupa que lhe jorra água cristalina em deserto árido, ele fere o seio o mais empedernido deste século de cobiça ardente, donde se lhe esguicha fluido bénovolo de inapreciável simpatia.
Ora, morno como a tarde ao descambar do sol, ele abafa em atmosfera aflitiva tudo quanto se lhe comunica; ora arrogante, qual tufão desenraizando carvalhos seculares e dobrando juncos flexíveis, alastrando além, em seu curso desabrido, a desolação e ruína, ele verga uns, abate outros, e vence a si próprio, se uma barreira mais sólida não retém seus ímpetos. É a crise frenética da cólera, crise que se manifesta por modos variadíssimos e tão comuns que pouca atenção lhe consagramos. Os estribuchos da criança cabeçuda, os ataques nervosos e faniquitos das moças, as enxaquecas das velhas, a rabugem das vovós, as pipocadas do mata-mouros são letras símplices do seu complicado programa.
Enfim, para ferrarmos a argolinha, retenhamos as divagações, e tornemos a Espiridião e Taquin.
Os remoques do sábio embuçaram o nariz de Espiridião como pitada infernal e torturavam-lhe as entranhas como uma bomba arrombando um paiol de fragata; mas ao estampido do canhão precede a faísca da espoleta; ao bramir do trovão precede a luz do relâmpago. Reparando na lividez de Espiridião, que sufocava de raiva, Taquin, quase temendo as consequencias deste acidente, incontinenti corrigira a sua imprudência, purificando-a por esta fórmula: “É bem simples, caro amigo, o que exige Mlle. Cellina. Ah! se outra dificuldade não retalhasse meu coração, quando... Águas passadas não movem moinhos”.
Nao é difíci1 emagrecer-se ou vice-versa. O método inglês, empregado com sucesso extraordinário em circunstâncias análogas, é talvez o que mais vos convenha pela rapidez: “A nutrição, tomada em quantidade diminuta, compôr-se-á de carnes brancas, completamente magras e bem temperadas; legumes cozidos em água, sem manteiga, nem substâncias gordurentas, frutas, ácidos, bebidas aciduladas, diuréticas, vinhos brancos, café forte, etc. A esta alimentação deve-se juntar os sudoríficos e os purgativos salinos com intervalos certos. Também é indispensavel a ginástica feita por muito tempo. Recomenda-se o exercício a cavalo, em carro, a esgrima, a dança, a natação, enfim, passeios prolongados e a corrida até fatigar-se. Este regime, bem seguido, faz desaparecer o ventre mais volumoso e extingue a obesidade. O doutor inglês Wadd cita o exemplo de uma moça obesa que, tendo observado esta receita durante dois meses, perdeu 80 libras de corpulência”.
Espiridião copiava sem perder uma virgula o que lhe ditava Taquin.
— Conheceis Pico de Mirandola, que sabia 22 línguas aos 18 anos, e a quem bastava ouvir uma vez a leitura de qualquer livro para repeti-lo de fio a pavio? Aos 23 anos, ele possuía todos os conhecimentos humanos, argumentava com elegância e batia todos os seus adversários. Entrava na casa dos 24 anos quando foi a Roma e logo ao chegar àquela cidade anunciou que estava pronto para sustentar teses sobre quaisquer proposições, quer científicas, quer teológicas, sem exceção. O Papa Inocêncio VIII refutara treze dentre elas, que se elevavam a mil e quatrocentas. Pico deixara várias obras sobre filosofia e teologia.
Ora, se asseverássemos que Taquin refutara em um grosso volume toda a filosofia e teologia de Mirandola, quem nos prestaria crédito? Em breve vereis que somos em nossas propagandas mais circunspectos do que os jornalistas. Demais, Taquin traduz, fala, escreve, explica, argumenta, comenta trinta e seis línguas, inclusive a dos tamoios; conhece todos os ofícios mecânicos; enfim, sabe tudo, mesmo dizer missa em todas as seitas! É certo que a sua idade já é de um senador; mas ah! se os nossos excelentíssimos empoleirados que dormitam nas “curues”, tendo apenas em mente os nomes de seus afilhados, ou preces desconjuntadas com que aguardam a morte, como galo velho sitiado pela raposa; ah! se eles tivessem a memória do sábio francês! talvez não fossem tão amaldiçoados!
Portanto, à proporção que o rosto do seu amigo se desencapela, ele divagava com seu método inglês a ponto de ir parar na terra dos Helenos, “que possuiam entre todos os povos a beleza do corpo no mais alto grau”, ocupou-se dos seus exercícios e meios empregados para obterem tão grande força e destreza incomparável, que conseguiram.
Descrevera seus ginasiarcas e cozinhas, e sem abandonar o assunto falou igualmente de Mr. Puvis, cujos melões, regados por um método de sua invenção, chegaram a pesar de 30 a 40 libras, sem perderem nem o sabor, nem o perfume. Ainda mais, sustentando sempre a mesma teoria, citara o sábio Dumeril, que demonstrara depender entre as abelhas “a sexualidade, da alimentação e da quantidade de ar”. Mr. Milne Edward conseguiu parar a metamorfose dos embriões de rãs, privando-os de ar e luz, fazendo-os da mesma forma atingir dimensões enormes. Os ovos de ganso, galinha, etc, que se faz chocar por meios artificiais, produzem monstruosidades desta ou daquela parte, calculadas conforme a aplicação do calor durante o período da sua incubação. E os métodos apresentados pelo estudo do célebre Bakrwel não são tão importantes? Após 15 anos de estudo, ensaios, experiências, esse homem obteve privar ou dirigir para tal ou tal orgão os sucos nutrientes.
— Os bois, por exemplo, que ele criava para os açougues, eram dotados de pernas curtas, pança estreita, ossos pequenos, pele fina, enquanto que o peito e a parte compreendida entre as duas omoplatas era larga, profunda e carnuda enormemente; a massa muscular formava os dois terços de peso do animal. Julgando inútil os chifres dos bois destinados. ao corte, criou uma raça sem essas armas. É a Bakrwel que a Inglaterra deve os seus bois gigantescos, os seus grandes cavalos de carga, os seus corredores, e os mais belos carneiros.
O método conhecido pelo nome de Trainers, desse célebre inglês, espalhou-se pela Europa inteira, e pode sem inconveniente algum ser aplicado à raça humana, como no-lo confirmam os Boxeurs e os Jockeys que o executam à risca.
Taquin, como velha inda estirando o tipeti que escorre o sumo da mandioca, imprensa em resumo memorável toda esta arenga, encadeando a ela outra não menos importante sobre as modificações progressivas do estado social da mulher, que passando de cousa, que era em todas as legislações primitivas, à condiçao de serva, cujos pulsos roliços eram roxeados pelos grilhões da lei romana vitae et necis, quebrando os dogmas do Cristianismo o seu cativeiro e, vestal inviolável da liberdade, filha predileta dos preceitos de 1789, tornou-se rainha do universo, invadindo os salões, discutindo política, dominando nos clubs, comentando os artigos das gazetas, trocando a pena pela colher de pão, raciocinando sobre a inviolabilidade do Papa ou cumprimento e supressão das barbas. dos sacerdotes, zombando e inutilizando os anúncios dos médicos parteiros de mãos pequenas, acudindo ao rufar da caixa nos hospitais de sangue, ouvindo as preleções nas academias e.... Enfeitando-se à noite, fala ao amante a mesma linguagem do rouxinol entre flores, após os labores da jornada, preparando o ninho sobre o ramo pendente.
Chegando a este ponto, Taquin, que tinha por alvo desviar a Espiridião da estrada perigosa para onde o levava aquela paixão insensata, curvara de repente seu argumento em um sofisma fatal; provando que o amor é apenas um desvario fantástico da razão, desvario que cede ao mais das vezes a uma mudança de clima, a perspectivas novas, e concluiu, repetindo com Pelletan: “A mulher data do vestido; dantes era apenas uma femina hominis”. Mas desde o dia em que, vestida e sagrada pelo véu, vestal e guarda de seu corpo, pôde só atar e desatar o laço do seu cinto, desde então adquiriu a propriedade da sua pessoa, e conheceu o pudor!
E na verdade os mistérios são tão necessários para o amor como as sombras para realçarem a perfeição de uma pintura; e a mulher, sombra feliz, que dá todo o mérito ao quadro da vida, deve, como a sombra em luta com a criança, “evitar-nos quando procuramos prendê-la, prender-nos quando procuramos fugi-la”, e segurando-nos em suas tranças perfumadas, como baleias nos harpões, devem largar ou contrair a corda até nos debilitarem, como essas vítimas das jiboias das tradições das florestas; e, quando inertes, arrastarem-nos a seus colos, proferindo então em um olhar voluptuoso este doce juramento: “És meu; sou tua!”.
Eis o que extraímos da carteira do nosso amigo, com bastante dificuldade de interpretação, tão complicado era aquele labirinto de rabiscos. Sem dúvida as patranhas de Taquin abalaram seus cálculos; porém, como as vibrações enchendo a concavidade de um sino quando o martelo fere suas paredes, essas impressões varreram a caverna do peito de Espiridião e calaram-se pouco e pouco.
Logo pela manhã o comissionário Baudart viera receber suas ordens, e encontrou-o lépido, com uma carta volumosa, na qual consumira uma resma do mais mimoso papel parisiense, dirigida a Celline, renovando mil protestos de amor e expondo a esperança de satisfazer a condição que ela lhe impusera. Também Mlle. Alvina acudira ao chamado de Taquin.
A sorte do pobre Espiridião mudou de aspecto. Com efeito, um quarto, que a instâncias suas e para si mesmo Taquin alugara na rua Monsieur-le-Prince, no próprio sobrado que Celline habitava, servia-lhe de observatório, donde seguia os passos da moça. Devemos confessar, em abono da verdade, que o porteiro Gilliard se opusera com pertinácia à realização desse negócio, e apesar de vencido pelas balas de ouro, todavia continuava a desconfiar de Espiridião, cuja conduta lhe azoinava os miolos. Quais são os seus projetos? O que significa este homem passar aqui tempo esquecido, com a porta aberta, olhando para as pessoas que sobem as escadas, fumando bons charutos Londres, repimpado em fofa poltrona, bebendo constantemente café carregado e seduzindo os criados com gordas molhaduras?! E bandido espanhol não tem que ver! Ah! maldita Espanha, que descarrega todos os seus salteadores sobre a França, como se fossem poucos os nossos comunistas!
Estas reflexões atormentaram por tal forma o juízo do porteiro visionário que finalmente denunciou Espiridião à polícia, a qual o mandou espionar pelos seus agentes secretos. Espiridião, porém, era até certo ponto feliz; via sempre Celline, ou tinha sempre notícias dela por sua amiga Mlle. Alvina, a quem dava muito trabalho de lavagem, ou pelo commissionário, que tomara a seu serviço só para acompanhar sua bela, e levar-lhe suas missivas.
Celline era dotada de uma alma cândida; aceitava, pois, essas provas de afeição, com alguma desconfiança, é verdade, porém com bondade, e acedera em conversar de quando em quando com o nosso compatriota, o que tinha lugar no quiosque do Luxemburgo. Ela o escutava como se escuta a um amigo, proibindo-lhe qualquer declaração de amor, e dizendo-lhe, em sua última entrevista:
— Entre nós há um abismo, senhor! Aceito com reconhecimento a simpatia que me manifestais a mim, pobre desgraçada!, sem interrogar vossa consciência; mas não posso, e nunca poderei aceitar vossa paixão. Sois leal? quereis minha amizade? minha ausência vos causa pesar? Pois bem, eu vo-lo pouparei tanto quanto depender de minha vontade, se quiserdes poupar-me a dor de falar-me em sentimentos estranhos ao meu coração, que jamais acolherá as vossas palavras. Sabeis quem sou?
— Sois uma pérola! respondeu com efusão o nosso protagonista.
— Sim, meu caro pai às vezes me dá também esse nome, acrescentando, porém, que sou uma pérola no lodo! Oh! Fugi de mim!
Celline, deixando Espiridião estático, desapareceu assaz comovida. Durante alguns dias ele a procurou debalde; também Alvina não veio procurar roupa, sendo substituída por suas irmãzinhas, que se mostravam ignorantes às indagações quer do sábio, quer do brasileiro.
Baudart nada adiantava
Uma noite, Espiridião e Taquin acidentalmente foram à Closerie Lilas. Quem não conhece este baile de estudantes?
Uma coleção de tipos a mais completa; número crescido de mulheres de chinós de todos os matizes, pretos, louros, castanhos, russos, tintos; trajadas de todas as cores imagináveis e com botinas de tacãozinho alto, dançando, pulando, saltando, correndo, desprendendo risos, gargalhadas ou gracejos em escala de voz de flauta; homens de todos os países, idades e condições, imitando-as, ou perseguindo-as, convencendo-as, evitando-as ou satisfazendo os seus caprichos mais extravagantes, “lindos canários que se deixam cortar as asas?” e toda esta chusma descuidosa, “rolando uns em volta de outros como esferas celestes”, aos sons de excelente e estrepitosa orquestra, que abala o assoalho de salão vastíssirno, cercado de mesinhas, onde comem e bebem, uns jogando, atirando no alvo à pistola ou à carabina, outros filosofando em um caramanchão do lindo e imenso jardim; estes discutindo perto dos tanques cheios de peixes, aqueles.... enfim, quem saberá descrever fielmente esses bailes, que possuem todas essas originalidades que apontamos e muitas que escapam à nossa pena? Quem saberá pintá-los com os esmaltes que os caracterizam? Sente-se, goza-se, admira-se essa animação, porém reproduzi-la é difícil, quase impossível!
A vista de um namorado alcança mais longe do que a da águia. Descendo as escadas com o seu amigo, Espiridião reconheceu Celline e Alvina encostadas a um pilar, vendendo flores, no fundo da sala, e tentou romper caminho através das ondas compactas de corpos que lhe obstruíam a passagem para junto daquelas moças. Faltava vencer pouco para surpreendê-las quando se ouviu Celline soltar um gemido de cólera.
Um estudante, belo moço, de estatura elegante, de negra cabeleira pendente sobre os ombros, louro bigodinho sombreando os lábios, calçado com botas de montaria, com um chapéu tyroliano, de feltro, afunilado e guarnecido de penas de pavão, audaz abraçara Celline, selando seus lábios de rosa com um rápido beijo.
Espiridião não encontrara mais barreira diante de si; dir-se-ia que essa montanha devassara os ares e caíra sobre o estudante, despregando formidável bofetada, que o estendera por terra.
Um rolo embaralhou tudo; a orquestra irrompeu com estrépito, para abafá-lo.
Taquin, todo machucado, saíra das garras da morte, livrando-se das botinas que marchavam sobre ele, refugiando-se para debaixo de um banco, a malgrado seu; Celline e Alvina pálidas, lívidas, tremiam junto do brasileiro que, com um braço, as defendia com coragem de Titão, e com o outro repelia os partidários do seu adversário.
Os “sergents de ville” e os “gens d’arme” restabeleceram a ordem; porém um duelo de morte estava emprazado entre Espiridião e o marquês de Nirasceau, que se erguera por fim com o rosto ensanguentado e rangendo os dentes de raiva.
Continua [no próximo número]...
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* Romance romântico, publicado em capítulos, como folhetim, na Revista Lux!, Rio de Janeiro, 1874, capítulo IV, pp. 69-73.
** Francisco Gil Castelo Branco (Livramento, atual José de Freitas – PI, 1848, Marselha - França, 1894) foi diplomata, jornalista e escritor (romancista e contista filiado à estética romântica). Formado em Letras na França, residiu no Rio de Janeiro, onde colaborou em vários periódicos, como Revista Lux! e jornais, como Gazeta Universal e Diário de Notícias. Exerceu o cargo de cônsul geral do Brasil em Assunção (Paraguai) e em Marselha (França). Publicou, em folhetins, A pérola no lodo, romance humorístico (1874), Um figurino, conto (1874), Contos a esmo (1876), Os gansos sociais (1878), Ataliba , o vaqueiro, conto (1878), Pobreza não é vício (1884).
*** Atualização ortográfica e notas por Airton Sampaio, escritor e professor no Departamento de Letras da Universidade Federal do Piauí. Foram mantidas as grafias de certos nomes próprios, como Celline.
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