segunda-feira, 26 de setembro de 2011

UM FIGURINO*, conto de Francisco Gil Castelo Branco**

OFEREClDO À SRA. D. M...

É um pequeno trabalho feito às pressas***. Deveria talvez queimá-lo, não descobrindo em suas linhas descoradas nada, absolutamente nada que mereça prender a atenção de uma poetisa tão distinta como V. Exa. Contudo, ouso publicá-lo como prova de que sei obedecer às ordens de V. Exa, que o compreenderá e me perdoará as suas imperfeições.

Ofereço-o igualmente às suas dignas íntimas... que nele encontrarão também um signal de estima e reconhecimento, mas... sem dúvida perdi a aposta.

CAP. I

A história de um figurino! Devo contá-la?

É página escrita com as cinzas de um charuto, página cujos caracteres dcsaparecem ao mais ligeiro sopro de brisa!

É uma nota desafinada daquele tempo feliz em que nada turbava o meu ânimo, senão a cobrança do hoteleiro Barbosa; época de sonhos dourados; onda azul do meu Oceano de bonanças, balouça o teu fluxo e refluxo no bojo do meu tinteiro; lança as minhas ideias no papel branco, como a vaga impelindo sobre as areias da praia as esponjas que boiavam incertas!

Tragando a taça amargurada do presente, procuro as nuvens daquele horizonte deslumbrante que cercava o meu passado —onde as sumiram elas?! Lago de perfumes, onde navegava outrora minha barquinha com as velas enfunadas de esperança — secaste!... Bosque copado, onde sonhei tanto! —as tuas folhas tornaram-se amarelas, e caíram como caíram, uma por uma, todas as minhas quimeras!

Parece que foi ontem...

Em uma tarde terna eu conversava com algumas moças, belas e espirituosas que, afáveis, me prestam atenção.

Conversávamos; e sobre o quê? Qual o assunto que pode a mocidade trocar entre si com maior interesse?

Dizem que as donzelas do nosso século cuidam de política, maçonaria, literatura, e outros misteres de homens presumidos, não o sei; nunca as ouvi falar senão de modas e amores — e têm razão!

Eis o seu idílio natural, tão natural como o gorjeio do sabiá; tã natural como a harmonia da natureza; tão natural... Oh! meu Deus, seria bem triste o teu mundo, a tua obra-prima seria incompleta se a mulher esquecesse que o amor é a sua missão! Quanto seria triste então a nossa passagem pela terra, que se mostraria mais sombria do que a gaiola abandonada pela avezinha que fugiu, e canta além, na floresta, o hino da sua liberdade, voando de galho em galho, lá no cedro gigante.

Dizei-o, velhos celibatários!

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Conversávamos, portanto, sobre a influência do amor, e eu, insensato!, tentava convencê-las de que o meu peíto estava regelado; que eu encarava a beleza com o mesmo indiferentismo com que olhava para um figurino, que estava na mesa em que eu apoiava o braco.

No entanto, não mentia; dissimulava.

O meu coração, na verdade, cansado de lutar contra o abandono e a tradição, tinha as fibras enfraquecidas pela dor; mas quem me dera encontrar um ente que o agitasse de novo!

Clamo contigo, Chateaubriand: “É um grande mal para o homem alcançar mui cedo o alvo dos seus desejos, e percorrer em alguns anos as ilusões de uma longa vida!”

Aos vinte anos amei com todo o entusiasmo e... fui esquecido.! “Percorri o mundo e nada encontrei que substituísse o que eu havia perdido” nas lágrimas que verti, e perdi as últimas crenças nos prazeres de uma vida de insônias!

Quem me dera encontrar um ente que de novo agitasse o meu coração! E as cãs e as rugas já se aproximam de mim com suas feições hediondas, e ninguém escuta o meu apelo, e eu dissera às minhas amáveis interlocutoras que era insensível; eu o dissera, e elas talvez o acreditassem! Talvez e, quando me despedi, uma dessas moças, com o espírito sutil, com a malícia própria do seu delicado sexo, com um sorriso sedutor, como o não tivera Eva, apresentou-me o figurino, dando-me familiarmente esta lição de cortesia: "Leve-o; guarde-o, pois que ele constitui o objeto da sua admiração!” 

Corei; aceitei o presente; pendurei-o com um broche vermelho à minha cabeceira, e nunca me deitava sem lembrar-me do meu quadro, sem lhe dirigir urna oração de zombarias, ferindo o poder da mulher, o que eu julgava ineficaz contra a minha experiência! Loucura! O homem nunca é assaz experiente para amar segundo o impulso dos seus caprichos! Vereis: pouco e pouco os traços, que formavam o conjunto daquele desenho, gravaram-se em meu cérebro, como as linhas tiradas pelo giz sobressaindo na lousa! Pouco e pouco me apaixonei por aquela estampa de modas, que contemplava durante horas esquecidas, e contemplava como nunca o fizera inglês algum perante a Madona de Rafael!

Era um delírio! Eu via-a por toda a parte: Em meus sonhos ela se mostrava tentadora, e eu experimentava uma sensação estranha, sentindo as suas madeixas roçarem docemente minha fronte; e, com o seio arfando sob essa impressão dulcíssima, eu repetia em êxtase a linguagem de Michelet: “Um simples fio de cabelo de mulher vale tanto, muitas vezes mais do que um mundo!"

Os seus olhos fascinavam-me então e, dominando o meu pensamento, como pirilampo trilhando as trevas com as suas lanternas, transmitiam à minha alma urna volúpia insaciável!

Era um delírio! Eu via-a por toda a parte: Em os meus momentos de spleen, descobria-a embalando-se entre as espirais de fumaça que exalava o meu cigarro, convidando-me para subir consigo às regiões etéreas!

Era um delírio! Eu via-a por toda a parte: Entre as espumas de champanhe, também a distinguia nadando como uma sereia, seduzindo-me com o seu canto a descer consigo para um abismo insondável de delícias!

Visão celeste, quanta aventura me alimentaste, e quanta amargura me fizeste sofrer, transformando-te em realidade!

Quantas recordações, quantas! Mas o meu temperamento saltitante recusa arrastá-las sobre queixumes, e dando, portanto, alguma elasticidade à crônica, coloca-a de chofre entre os bastidores do seu teatro, que não foi outro nem menos do que a cidade de Campos.

Conheceis?

Célebre nas tradições dos Goytacazes; célebre atualmente pela importância da sua lavoura sacarina, cujos mecanismos são os mais aperfeiçoados que porventura existam entre nós, o seu nome retine pelo nosso Império, levando — cunho e malha — como sinônimo de riqueza; e, fato singular!, mesmo nos círculos ignorantes, ele é vantajosamente aceito ao longe, graças à exportação crescida dos seus doces bem tacheados.

Campos, como todas as povoações brasileiras, que assaz mostram provir de uma mesma origem e haverem sido levantadas em uma quadra de especulação e atraso, tem um aspecto carregado e, se eu não retraísse a exageração, diria que as suas ruas estreitas, tortuosas, escuras, malcalçadas, se assemelham à boca de uma bruxa octogenária; porém, não; não acarreto sobre a minha corcunda esta responsabilidade, que apago in limine, comparando a regularidade de sua construção a uma caixa de música, cujos dentes quebrados, uns mais, outros menos; uns enferrujados, outros perfeitos, funcionam sobre o cilindro, que gira sempre com precisão. Esta é a sua fotografia microscópica; porque, se os casebres esquisitos, mascarados de rótulas, bisnetas talvez de Badajoz, aqui ostentam a sua ascendência, zombando do perpassar da civilização, elevam-se dentre eles, como o rubro pendão gracioso da bromélia entre os raquíticos juncos dos brejos, soberbos prédios, verdadeiros palacetes, que atraem o olhar pelo seu garboso pórtico, aniquilando a triste lembrança que deixam as paredes úmidas e coradas de poeira daqueles alçapões cosidos com teias de aranhas e prestes a desabarem de instante a instante.

Contemplando essas carcaças — não me queiram mal pela franqueza —, contemplando-as, fico frenético, mau, intolerante, herético e... confesso! procuro em mente urna prece fervorosa, que dedico às santas do meu calendário, suplicando-lhes a caridade de abrasá-las em um incêndio!

Lisboa deve o seu aformoseamento ao terremoto que em l755 a desmoronou; Campos se tornará uma linda cidade quando a abandonarem as suas antigualhas, sem grandeza nem arquitetura.

É minha convicção, percorrendo o seu majestoso Paraíba, mais fértil do que o decantado Nilo, e que rola em suas águas mais ouro do que nunca o arrastara o Pactolo das lendas.

Campos... receio! — ainda dois minutos, e digamos que a índole dos seus habitantes é dócil como o caldo dos seus famosos engenhos e, se porventura a efervescência de uma política endiabrada, que felizmente caducou, os tornou severos, desconfiados, algum tanto egoístas, mesmo insociáveis, o assobio dos vapores, o rolar vertiginoso das locomotivas, formidáveis serpentes de Faraó, como as denomina Figuier, bufando as camadas de fumo através das suas matas preciosas, vão purificando, apagando essas dissidências fúteis, e restabelecendo a sua nomeada de hospitaleira e jovial, corno a gentil camponesa que sempre satisfeita, radiante de júbilo, conduzia o rebanho pelos prados floridos, tangendo o pandeiro que entoava as suas cantigas, inspiradas falas endereçadas ao seu jovem pastor, que lhe respondia d’além em flauta sonora, partindo pressuroso para abraçar a sua amante sob uma moita tecida de trepadeiras silvestres e lianas... Campos, és caluniada!

Que me importa se em teus restaurants a maledicência ociosa rufa a minha insignificante reputação, se os teus filhos honestos me cerram a mão de amigo!

Que me importa se os teus salões se conservem fechados à minha individualidade, se em teus hotéis encontro sempre quentes assados e vinhos frescos!

Que me importa a falta daqueles prazeres mundanos, que se vendem além, nas praças públicas, se encontro o trabalho!

Foste o berço dos meus enleios, nunca te esquecerei!

Ali ainda avisto, lavrada pelo corisco, a pobre palmeira, outrora tão vivente, que guardava o ninho dos meus amores. Mas, invocando essas reminiscências, assentemo-nos à sua triste sombra e revelemos os nossos segredos, baixinho! — baixinho! — tão baixo que apenas nos ouça o compassado sussurro do regato constante que ainda banha o seu tronco, ou o embate do vento que ainda brinca entre as dobras do seu desbotado leque, como a loura criança com os seus róseos dedos alisando os fios de prata da cabeleira do ancião, narrando-lhe ingenuamente a história dos seus brinquedos. Assim, contemos a história do nosso figurino. É tempo!

CAP. II

A folhinha marcava glorioso dia para um dos subúrbios desta cidade, que o aproveitava festejando o Espírito Santo, sem perder um minuto das horas que voavam sobre o mostrador dos relógios. A influência muito prometia, sendo o seu termômetro o cabeleireiro francês Mr. Hyppolite, que não descansava então; e, com os sapatões alvacentos de poeira, airoso, carregando a lata cor de chocolate, contendo os ferros da sua generosa profissão, as pomadas... o pó de arroz... . as tesouras... os ganchos... e os alfinetes, atendia com exatidão aos chamados que lhe provinham de todos os lados intra et extramuros; uns, querendo que ele fosse, calcantibus pedis, frisar a senhorita; . outros, reclamando o monstruoso chinó, que vicia a remendo como casco de fragata avariada; outros... e o bom francês, entre um sapresti! e um sacrebleu! achava tempo para tudo, distribuindo-o com mais facilidade do que a de um ministro da Fazenda, é verdade, porém, acrescentaremos, em prejuízo às vezes de algum freguês, a quem barbeava com pouca atenção, arrepiando, portanto, a sua pele no fio da navalha!

Sou indiscreto!

Também os boleeiros, parafusados nas almofadas dos seus coches, como que formando com eles uma única peça, apesar de alguma diferença haver entre os seus corpos e os corpos das suas parelhas, magras mais do que o Rossinante de D. Quixote — os boleeiros estavam altivos em seus postos, onde não os alcançava qualquer psiu! Tinham maior trabalho então do que um excelente empregado de rendosa alfândega.

Os moleques não podiam ser enviados à rua porque esqueciam os recados, esquecendo os estalos da palmatória pelos estalos das bombas que arrebentavam, saudando o Santo lá perto da capelinha, e seguiam, com a pupila dilatada de inveja, os tabuleíros enrebuçados de toalhas bordadas, que passavam às dezenas procurando a mesma direção.

As velhas vestiam as suas capas solenes; fechavam todos os cantos da casa; empurravam o molho de chaves nas profundas algibeiras, penduravam a cruz de ouro ao pescoço; persignavam-se em frente ao clássico oratório e, tocando as filhas dois passos para a frente, transpirando, bufando, arrotando... e... marchavam na pesada cadência de quem busca o caminho do céu, seguindo-lhes as pegadas um bando de mulatinhas com as suas roliças contas de aljofares, chinelinhas de verniz estalando nas calçadas com adelman, e os lencinhos de cambraia ensopados d´água-de-colônia.

Diabinhas! — eram também acompanhadas em distância conveniente pelos garotos destemidos.

Os caixeiros em seus trajes do casimira — bons maganos! — trilhavam o mesmo plano, contentes, certos de alcançarem a vitória das conquistas, como outros tantos Cruzados embarcando-se para Jerusalém.Quantas cativas não trariam eles, vencidos os Sarracenos!

Os patrões, com os feltros escovados, botinas reluzentes, e bengalas comme it faut, mostravam-se em grupos nessa mesma estrada, dissertando sobre as transações comerciais, ou sobre o importante processo que me lavrou a Sapientissima loja escocesa Zacatyog, a bem da fraternidade universal.

Belzebu no conselho dos demônios proferiu esta sentença: “Quanto a mim, reinar é digno de ambição; é preferível reinar-se no inferno do que servir-se no céu!.”

…and in my choice
To reign is worth ambition, though is Hell!
Better to reign in Hell, than servo in Heaven!...

Este princípio do chefe renegado talvez angarie muitos adeptos naquele recinto de luz embaciada, onde os poderosíssimos lords ingleses, com as suas fachas de íris, e... Silêncio! perjuro plebeu! Eles são corajosos e... Cuidado com a demissão da Inspetoria! Apre!

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Enfim, temendo a prolixidade, falaremos da concorrência que atraía a Sacra Cerimônia, asseverando que a Casa Arthez & Vigné ficou sem um par de luvas brancas: secas, manchadas, todas venderam, lastimando-se os seus colegas de não terem contado com o caso para encomendá-las aos seus correspondentes no Rio. Como incorreram neste descuido, pois ignoram que é aqui de bom-tom o uso da luva branca de senhora, com qualquer toilette, em qualquer circunstância?

Causa-lhes reparo esta observação? O ganso é deste talhe, e cada terra com o seu uso, cada roca com o seu fuso, canta o rifão; porém, na tarde de que nos ocupamos, muitos fusos perderam as rocas, e muitas rocas perderam os fusos, que convergiram todos para o Sacco. Para o Sacco?

Sim, e não se torça a interpretação da cousa; que apenas exprime agora o nome da localidade onde se celebrava a festa do Espirito Santo, que foi admirada, louvada e lembrada como sendo uma das mais pomposas que brilhou naquele sítio, de há meio século para cá, o que ousamos afiançar porque assim o afiançavam as beatas, em opinião redonda, opinião que os assistentes compartilhavam, não constando nem da imprensa, nem das notícias particulares, que o Sr. Delegado de Polícia houvesse feito ali uma única prisão. No entanto o Zé Bonito, que fora o imperador, se comportara na altura de sua hierarquia, e não poupou a jeribita; corre mesmo que os móveis da sua sala ficaram salpicados do cerveja da fábrica Teixcira & Freitas, e algumas botijas enxugaram também daquela que tem a marca Areas & C.

E não houve milagre!

Foi milagre!

Mas que pomposa festa!

Os altares da modesta igrejinha, tão modesta que as suas paredes imploravam aos fiéis uma lavagem de cal, os altares da igreja estavam decorados de ganga escarlate, orlada de galão de prata, e em o seu frontispício ardiam doze lamparinas de vidro em linha curva, o que nunca se vira anteriormente, bem como os diletantes apreciavam um charivari interminável de quadrilhas, fandangos, polcas e lunduns, que executavam em altíssimo palanque oito instrumentos burnidos. A requinta estava insigne e o ofeleide retinia a distancia, rivalizando com o zabumba!

O império fazia-se igualmente notar, rodeado de ramos; e a folia, batalhão de crianças trazendo a bandeira, salvas, colomba, cetro, etc — era escolhida, perfeitamente luzida, estando os seus arqueiros — sem exceção! — com as calças brancas bem engomadas, as jaquetinhas encarnadas bem talhadas, e os gorros de lã com bolotas de retroz.

O manto do imperador do Espirito Santo era de cetim de mil réis ao metro, e os seus calções — corre em cochicho! — foram cortados pelo hábil alfaiate Constant Jeudy — somente, é pena! — as meias do altivo e espigado monarca eram de algodão, e assaz largas para os seus mirrados caniços. Em compensação, o trono estava dourado, e não se regateavam os bentinhos, que eram generosamente distribuídos, sendo a razão de se ver todos os pelintras e meninas coquettes com as asas do Espirito Santo, ou o seu olho milagroso, presos nas golas dos paletós e nas fitas dos vestidos.

A praça e suas circunvizinhanças estavam atopetadas de cavalos selados, carros puxados por bois, e cobertos de vistosas colchas de papagaios, etc., distinguindo-se, pendentes no interior dessas traquitanas, o espelhozinho de mascate com a efígie de Garibaldi, o pente de búfalo, saias, moringas, balaios. e outros trastes, indicando assaz que esses veículos incômodos, com as rodas ainda enlameadas, chiando sobre os eixos, arrastaram da roça famílias apreciadoras infaliveis do esplêndido fogo de artificio — como bacharelavam meus avós — composto de quatro estrelas, um amolador, um judas, e um navio, tudo suspenso em varas resistentes, onde também se prendia a curiosidade dessa boa gente, a quem não faltavam os comentários, aguardando o momento supremo, assentada em esteiras novas, chupando balas ou regalando-se de amendoins torrados, que comprava nas quitandas, que se perdiam além, como o provava a carreira de lampeõezinhos ou velas de sebo espetadas nos cantos das caixas de flandres contendo a mercadoria, cujo aspecto tanto aguçava a gulodice dos gamenhos que, com a voz sussurrada, os retinham com a frase mais conhecida — Me dá um vintém?

Vários botequins, improvisados com palhas de coqueiros, formavam divisões e compartimentos reservados, onde os galans pagavam alguns bocks, ou cafés temperados com rapadura, ou mesmo algum retalho de galinha endurecida, às suas almisquentas namoradas que, assentadas em bancos de madeira pesada e servidas em mesas da mesma marcenaria, julgavam-se todavia valiosas princesas do Mongol.

Forte pouca vergonha!

Aqui, sobre um pano engordurento, ferve o jogo de cartas; acolá, descanta um boçal trovador modinhas venenosas, com a toada de um violão rachado de tanto carpir, em disputa com a viola ou cavaquinho brejeiro!

Os sinos dobram anunciando o fim da ladainha ou terço, ou reza equivalente, que no interior da modesta capela grasnava o choro de capuchas assentadas nos tijolos, com as pernas estendidas em forma de X quebrado pelo centro, e esguichando cada qual mais alto, na crença provável de elevar melhor as suas preces à mansão divina, remindo assim com prontidão os seus pecados, embora as suas invocações fossem estropiadas em latim ou grego, formando, essa colocação de sílabas esquisitas, calimburgos interessantíssimos que por certo fizeram S. Pedro rir-se às gargalhadas, vertendo-os para a língua vernácula com dificuldades inauditas, apesar da sua ciência divina. Estes, por exemplo, Salus infernorum — Janua cavli—Kirie leison — que essas gargantas de trovão retiniam ao longe: — Sal em-pé-de-moro — Joanna-sclla - cristél - é - são!

Em resumo, o leilão teve tantas joias que assombrou ao próprio pregador da festa: segredos, ceras enfeitadas, pombas, galos da Conchinchina, carneiros, um cevado, um vitelo mesmo! figuravam entre as mil dádivas proclamadas às massas...

As fogueiras já estavam acesas, e alguns pretos velhos de ganho pitavam tranquilamente ao lado delas em seus cachimbos de barro, rememorando as passadas façanhas; os moleques, com os guinchos dissonantes, visavam a descida das flechas dos foguetes que cortavam o ar; o povo emaranhava-se, escolhendo posição para apreciar o maravilhoso fogo de Bengala que ia arder; quando — levado pela corrente da multidão, passando perto do adro, apercebi — oh! porque não foi uma ilusão de óptica! — apercebi a encarnação do meu figurino! A linda mulher, que eu amava em sonhos, estava ali, em frente de mim, a dois passos de mim, de mim que a adorava sem conhecê-la, e que endoideci quase com o prazer de encontrá-la!

O seu vestido de seda verde cor de garrafa, como o do figurino, também as suas tranças de um castanho alontrado,ondulando um labirinto de seduções; os seus olhos, negros como a escuridão do caos, brilhantes como a estrela Vênus, desenhavam-se numa curva de extrema pureza; as pestanas longas e acedadas faziam sombra na alvura do seu semblante levemente tinto, como a pétala da rosa nos seus últimos instantes de fragrância. O seu pescoço era torneado como o tem somente a gazela, e branco como o floco de algodão prorrompendo o invólucro; os seus lábios de nácar limitavam uma boca graciosa como a conchinha que se abre, boca que encerrava uns dentes de pérola, e... enfim, “a graça estava em cada um dos seus movimentos, o céu em seu olhar, e em cada gesto a dignidade e o amor!” — "Grace was in all her steps. Heaven in her eye. In every gesture dignity and love..."

O dúbio reflexo de uma lanterna batia sobre as suas feições angélicas, formando uma auréola para a sua beleza incomparável. Uma exclamação partiu do meu peito, assustando-a; e, sem dúvida, eu tomaria essa mulher como visão sobrenatural se não ouvisse a sua voz melodiosa responder a uma pergunta trivial que lhe propusera figura exótica e rubicunda que, tendo suspenso sob o braço o volumoso chapéu de sol, cujo cabo bem se prestaria às funções de muleta — sisuda e cortês oferecia uma pitada da sua esmaltada tabaqueira de bispo ao círculo que lhe prestava reverência.

Este tipo burlesco eu já conhecia de muito e merecia a sua consideração, porém nunca me passaria pela ideia que semelhante tronco gerasse uma prenda tão delicada.

São caprichos da natureza; e quem não tem deparado com extravagâncias idênticas? Quem não sabe que a célebre rosa de Jericó expandia os seus perfumes em terreno ingrato e estéril? Quantas vezes o gênio artístico curva a sua altivez, repleto de entusiasmo, colhendo sobre as ásperas escamas da rocha uma folha aveludada, cujos matizes riquíssimos são combinados com tanta harmonia e graça que nunca pincel algum conseguiria reproduzi-los?

É sobre a casca repulsiva que arrebenta a parasita resplandecente e formosa; é sobre o galho seco que o colibri de plumagem deslumbrante suspende o seu ninho e agita as suas asas furta-cores! Assim também D. Amália d’Amarante, a mais bela das moças, era filha do Patrocas, o mais imperfeito dos homens. Que me importava já a sua fealdade, com a qual tanto eu antipatizava? Procurei, e consegui, sem dificuldade alguma, frequentar a sua casa, procurando aproximar-me daquela mulher que adorei sonhando e pela qual perderia a vida se ela desprezasse esta afeição desmedida que lhe era consagrada.

Eu mendigava um sorriso dos seus lábios sem indagar dos perigos, e para conquistá-lo sentia animar-me maior coragem do que a de Pescecola afrontando os abismos de Carybdes, para merecer a mão do ente amado. Também o que não empreenderia eu para ser digno do seu afeto? E como chegaria a obtê-lo?

Parecem retinir em meus ouvidos as gargalhadas dos pilantras que, pesando a minha ingenuidade, declinam-me os títulos de tolo, pateta, e concluem — tenho pejo de lavrar a sentença — concluem chamando-me — inocente — na essência do adjetivo. Na verdade, sempre fui tão acanhado perante as moças que nem mesmo seria capaz de lhes conceder um beijo, se mo suplicassem!

Nunca, nunca guardei firmeza ao contato de uma fímbria de vestido, o que sempre produziu choque mais forte em meu sistema nervoso do que se ele experimentasse o roçar da cauda mortal do peixe elétrico do rio Mearim! Nunca, nunca resisti às chamas de um olhar de... donzela, devo acrescentar, porque as velhas nenhuma ascendência exercem sobre as minhas cordas sensíveis. Nenhuma, e podem submeter-me à análise!

Contudo, apesar da originalidade da minha compleição, não fui tão parvo como se poderá julgar, porque em curto espaço de tempo eu cativara a confiança do bravo tenente-coronel, discorrendo com loquacidade invejável sobre a Bahia, sua terra natal, cujo aspecto, formando um anfiteatro, assemelhando-se a um presepe, banhado pelas águas azuladas de um golfo extenso, onde outrora nadavam as baleias, era tema irrevogável da nossa conversação, tema que eu estudava diariamente, em todas as fases, para ali desenvolvê-lo em formas poéticas antes da chávena de chá, bebida da sua predileção; inúmeras vezes ouvi-o queixar-se amargamente de uma associação de beneficência que, restringindo das despesas, dera um baile de caridade sem oferecer a bandeja de água choca, segundo os costumes coloniais.

Ele era antes de tudo homem de estômago; não aceitava ideia alguma generosa se porventura ela não acariciasse o seu tubo digestivo! Era um desses bípedes qualificados nesta máxima do Evangelho: Para os pobres de espírito, o reino do céu!

Também eu decantava o passeio da capital da sua província, Mulata Velha, como a denominam. A igreja da Conceição da Praia, a Soledade, o Convento de S. Francisco, a romaria à celebre capela do Bonfim entravam igualmente com nosso catálogo de palestras intermináveis.

E a festa de 2 de Julho! — festa em que a população inteira, estudantes, negociantes, todos marchando unidos, vestidos de branco, com fitas auriverdes a tiracolo e flores nos chapéus do Chili, entusiasmados, arrastam carros de papelão contendo dois manequins representando um caboclo e uma cabocla que, entre uma algazarra infernal de fanfarras, sinos, cornetas, tambores, assovios, estalos de foguetes. rinchos de animais, e outras notas perdidas... marcham em triunfo pelas ruas da cidade até ao túmulo do general Labatut. É’ o aniversário da independência da ex-capital do Império; é o dia de maior alegria naquela gloriosa terra, e também... é o dia de maior namoro!

Revendo estes costumes, que são sagrados para um baiano, eu enfreava a vigilância de Patrocas, e achava brecha para atirar a minha setinha sobre o seio de D. Amália, que nos ouvia com atenção, sem todavia intervir no nosso diálogo. Contudo, nem sempre o jogo me corria bem porque, se iludimos o marido, a bruxa da sua costela, a respeitabilíssima senhora D. Quitéria, ali estava alerta, como sentinela avançada, com a vista acesa, os ouvidos escovados, acompanhando os meus movimentos mais sutis.

Quantas vezes estive prestes a renunciar a esta empresa arriscada! Mas nunca pude dominar-me. Creio mais fácil escalar uma fortaleza do que fazer-se uma declaração de amor nos nossos salões, onde o papel principal das senhoras solteiras é o de comparsa: escutar, calar, gesticular e retirar-se. Bom dia, boa noite, passou bem? são as únicas expressões que pronunciam com franqueza, e ai delas se não seguem à risca o programa!. . Uma faísca jorra da careta enferrujada da mamãe, reprimindo a ousadia, e o janota não se assenta mais nas molas das suas cadeiras... Atrevido! Salta fora!

É preciso tática, paciência, hipocrisia, para levar-se água ao moinho... . . Foi o que fiz a respeito de D. Quitéria. Custou-me, é verdade; porém atinei com a ponta do fio do seu novelo! Ela era fluminense, e ficou verdadeiramente minha amiga, asseverando-lhe eu que Paris é mais triste do que o Rio de Janeiro; que Nápoles e Constantinopla, com suas baías tão citadas, são dois canjirões à vista da bela Guanabara; que Londres é um deserto para quem gozou do movimento da rua do Ouvidor, e que a água do aqueduto de Lisboa é péssima para quem matara a sede com a da Carioca...

Quanto a D. Amália... marquemos aqui uma fermata; porque as lágrimas rolam pelo meu semblante e caem ardentes, apagando a data do meu namoro: 1 de abril de 1870.

Não posso passar além: os suspiros, os soluços, as palpitações... Ah! desfaleço...

CAP. III

O mais doce momento que marca a nossa existência; o momento que nunca mais se apagará da nossa memória é aquele em que dois olhares se cruzam, lançando um sobre o outro expressões ardentes de linguagem misteriosa, revelando o poema — imenso em uma só palavra — Amor!

Como as raízes das plantas sorvendo da terra o suco precioso que se transforma em seiva, a qual, por sua vez, passando através da hástea e dos ramos, dá vida às folhas e às flores, de que brotam os frutos sazonados pelo sol — assim também se germina a paixão, agitando em nossas artérias o sangue generoso que se cristaliza em o coração, alimentando este sentimento sublime, sem o qual a existência seria um degredo terrível, um lugar de trevas, “um zimbório negro, medonho, cheio de pesares e obscuridade, onde a paz e o repouso nunca poderiam habitar e a esperança jamais alcançar!”

— Amor! Torrente de fogo
Que as almas nutre e devora!
T. DE MELLO

Amor! — A sua linguagem purifica-se de lágrimas, como os vapores caindo em benéficas gotas de orvalho; e como as nuvens, aglomerando-se e trocando as suas faíscas elétricas, confundem-se em estrepitoso encontro; assim, em sorrisos ela se transmite, rápida como a corrente magnética, firme como a nota harmoniosa da natureza.

Ai! dos namorados se não fossem auxiliados por esse dom inapreciável — como se fariam entender em os nossos salões brasileiros, onde a donzela não tem liberdade de pensamento e apenas a tudo responde por monossílabos insípidos!

Os velhos! Os velhos — malditos velhos! — alerta, maliciosos intolerantes, observam-na com escrúpulo.

Foi o que me sucedeu a respeito de D. Amália.

Vários meses nos correspondemos por sinais cabalísticos permutados durante as gargalhadas do tenente-coronel Patrocas, que felizmente as “encadeava”, prolongadas e sucessivas, com as suas anedotas baianas. Eu principiava todavia a sentir necessidade de expandir-me; este gênero de namoro acabrunhava-me; parecia que eu tinha o coração em estufa, ou antes em uma caixinha onde saltitava como a “agulha de marear” determinando os pontos cardeais. O seu “norte” era o semblante radioso de D. Amália.

Porém... malditos velhos! que esquecem os seus dias de mocidade, e em tudo, com a vista “empanada” de cataratas, distinguem abismos ou interesses!

Têm razão! dirão os filósofos. Enganam-se, replicarão os dândis. — A contrariedade provoca a luta, a luta aguça os sentidos, inventa a astúcia, supera os obstáculos, envenena as crenças, a castidade d’alma; e, apagando o prisma, que dourava o futuro da virgem, deixa em troca dele, no seu leito nupcial, a túnica do indiferentismo e o véu da discórdia!

Em um baile — não sei como —, aos sons dos instrumentos, alucinado pela sua beleza, revelei a Amália o segredo que havia muito ela conhecia, o segredo que havia muito ela aceitara, o segredo que a cada instante ela esperava ouvir dos meus lábios.

Revelei-o; desde então, renegando os meus princípios, abandonando a repugnância e asco que sempre dediquei a esse gênero de correspondência secreta, em voga entre os namorados da nossa sociedade, parece-me impossivel!, paguei a uma escrava da casa da minha adorada para lhe entregar os meus bilhetinhos perfumados e outras bagatelas equivalentes, que lhe diziam o que me era vedado expor em os salões de seus pais, com sinceridade maior e mais comedida. Chamei uma escrava para minha confidente! Oh! Horror dos horrores! Chamei a ignorância, a estupidez, para intérprete dos meus sentimentos mais elevados! Ainda coro de vergonha e humilhação.

Usei deste expediente; e, confesso a minha miséria, usei-o em doses crescidas, escrevendo diariamente muitas cartas a D.Amália. 

Se em um momento de desespero eu não as houvesse queimado, talvez agora pudesse publicá-las, formando um grosso volume, e por certo seriam lidas com igual interesse àqueles que as pessoas sensíveis encontram saboreando as de João Jacques Rousseau. 

Sem dúvida a minha fraseologia não era apurada como a do célebre filósofo francês; eu não as escrevi com o estro de Saint Preux; porém verti para o papel o entusiasmo da mocidade arrebatada para um mundo de ilusões.

Eu era natural, desprendendo-me de toda a grandeza d´alma a minha paixão desmedida, paixão tão ardente quanto a do professor de Julie; louca quanto a de Werther à sua Carlota, imensa como a de Romeu a Julieta!

Não imortalizei Amália como Petrarca à sua Laura; não tive urna lírica sublime para decantar o seu nome como Dante o do Beatriz; nem consegui urna coroa de glória, que rne desse um raio para iluminá-lo através da escuridão dos séculos, como Camões o da sua Catarina; não pude chorar esses dias venturosos, como Dirceu separando-se da sua Marília; mas, como eles, entes privilegiados, como eles, também amei! Tanto quanto eles amaram suas deusas, amei também D. Amália, e amei-a talvez com mais fervor, porque a amei nas crenças dos meus vinte anos?! Por que não perdi estas recordações amargas na febre da loucura ou no silêncio de um túmulo?!

Tive um rival, o alferes Pacheco de Sousa: homem ignorante, soberbo, vaidoso, rico, também se propôs candidato ao ídolo das minhas adorações.

É verdade que D. Amália o desprezava. Mostrando-me ciumento desse indivíduo, ela respondeu-me:

— Crês que tenho péssimo gosto, o que não me é lisonjeiro. Não tenhas receio, o alferes Pacheco é um... bicho, que falia sem gramática, nem oportunidade; saca dos pés a botina em reuniões de cerimônia; escarra sobre o tapete como marinheiro que masca; palita os dentes com alarido no fim de cada prato, que devora como tigre, espalhando pela toalha parte do seu conteúdo; assoa-se no guardanapo; fuma como chinês; conta com ufania a barbaridade com que castiga os seus escravos ao mais leve pretexto; julga conveniente ridicularizar as mulheres; arrota sempre os títulos descohecidos de sua familia, oriunda dos “Deuses”, segundo a sua expressão habitual, apesar de seu avô haver sido vendilhão; enfim, acho-o atrasado, arrogante, e... é urna estampa que serviria talvez para “corretor”, ou o que imaginares de pior, levando em conta o seu nariz arrebitado, a sua cabeleira arrepiada em um todo raquítico, e as unhas aguçadas como as de um abutre... Meu pai é extremoso, minha mãe nunca me contrariou; estou certa não terei outro marido senão o da minha escolha, e esta escolha sabes que recaiu em ti.

Amália era uma moça espirituosa, instruída; não como geralmente se costuma aquilatar as donzelas que tocam quadrilhas de “Offenbach”, quebram os ouvidos alheios com alguma canção de Alcazar completamente aleijada, ou mutilam recitativos extravagantes, que não compreendem, incapazes de tomarem sem erro um rol de roupa suja; mas, em contrapeso da balança, dançam valsas inglesas e tagarelam sem importância sobre os romances de Alexandre Dumas, Paulo de Kock e... não cito um autor nacional, temendo discussões. Não, D. Amália não era desse número; inteligente, romântica, dotada de uma natureza exaltada e perscrutadora, ela entregara-se ao estudo, lutando contra a solidão dos seus vastos aposentos claustrais, e pouco epouco aperfeiçoara o gosto e adquirira grande soma de conhecimentos. Era
instruída, muito instruída; mas não aprendera a decifrar a ambição de seus pais; iludia-se. Eu iludia-me igualmente! Levado pelo acolhimento familiar que me dava Patrocas, que eu confundia com uma amizade extremada, escrevi-lhe pedindo a mão de Amália.

O velho veio logo à minha casa; e tão alegre estava que julguei ter “vento à bolina”.

— Então quereis a mão de minha filha?, disse-me ele assentando-se, e sorvendo uma formidável pitada, talvez a maior que jamais eu o vira arrancar da sua primorosa boceta.

Quantos indícios de bonança! Ganhei! ganhei! cochichava com os meus botões e, animado pela aparência, respondi-lhe com o sangue-frio de uma diplomata em cumprimentos.

— É verdade, meu tenente-coronel; a mão de sua filha é o mais rico tesouro a que aspiro.

Patrocas fixou-me com olhos de lince e... maldição! descoseu um gargalhada satânica, uma dessas gargalhadas zombeteiras, que parecem intermináveis, ferindo como a lâmina aguda de um estilete.

Fiquei lívido, estático como coluna de mausoléu. O velho “fungou” uma segunda pitada e, com ar grave, porém bondoso, acrescentou:

— Sois um bom rapaz, e eu sou deveras vosso amigo; porérn não refletis desejando a mão de Amália. Ela está comprometida. Paciência, homem! Paciência! Este negócio ficará entre nós, que seremos sempre os mesmos camaradas, não é verdade? Amália em breve será esposa do alferes Pacheco e...

Eu parecia submerso em um pesadelo pungente, e este nome despertou-me, como o escalpelo chamando à vida o corpo regelado de um ente que, sofrendo de catalepsia, já estava considerado cadáver sobre o mármore, em algum anfiteatro de antigas escolas; e, com voz cavernosa, abafada na dor, vexame, cólera, redargui-lhe com esta pergunta:

— É um gracejo, tenente-coronel?

— É sério.

— Enganai-vos. Tomai o meu conselho, e ficai certo das minhas palavras. Continuaremos as nossas partidas de “sollo” e... não façais maus bofes perdendo esta vasa; vereis que tenho razão.

Tomando uma outra pitada, ele tisnava-me o rosto com estes insultos, com tanta calma, como se me rendesse as maiores finezas. Não pude conter o meu desespero.

— Considerais-me um especulador?

Ele calou-se.

— Sr. Patrocas, D. Amália detesta o alferes Pacheco, e ama-me; não realizareis, pois, os vossos bárbaros intentos.

— E as provas?

— As provas, ei-las; e, tirando de uma gaveta um bauzinho que continha a correspondência de Amália, apresentei-lha.

Eu delirava!

Patrocas, examinando essas cartas, ficou por seu turno pálido como a porcelana do Japão, e em tom convulsivo, estridente, adiantou-se para mim com os punhos fechados, proferindo estas palavras injuriosas:

— Sois um infame mentiroso!

— Miserável! — repliquei insensivelmente, levantando uma cadeira; ele imitou-me, porém um poder oculto susteve os nossos braços, que se abaixaram, deitando por terra os instrurnentos de agressão. Encaramo-nos como duas hienas prestes a dilacerarem-se; meus olhos umedeceram-se; ele retirou-se, dizendo:

— Desisti de vosso plano de ambição, senhor; retirai-vos de Campos em oito dias, pelo próximo vapor, ou sereis desgraçado!

Caí em meu sofá soluçando como a criança que pela primeira vez se separou do lar doméstico, onde ficaram seus pais, seus irmãozinhos, os seus brinquedos, as recordações do berço! Chorei, chorei muito; e, depois ajuntando as cartas dc Amália, as quais Patrocas deixara esparsas no chão, beijei-as; e, dominado não sei por que pensamento absurdo,queimei-as! As chamas, enroscando esse montão de papel que crepitava, enegrecia-se, pulverizava-se, pareciam também devorar a minha alma em um fogo mais veemente do que as labaredas que alimentam as forjas do inferno...

Decorria o prazo fatal; em vão tentei ver Amália, ou comunicar-lhe a minha posição. Joaquina, a escrava que me servia em semelhantes circunstâncias, havia desaparecido. Eu persistia!

Na oitava noite depois da ameaça de Patrocas, eu voltava de um café, onde fora procurar debalde distrair o meu espírito abatido. O tempo era medonho; o trovão estremecia as vidraças dos edifícios, que pareciam vacilar sobre os alicerces, e seus tetos eram iluminados de instante a instante pelos coriscos que dir-se-ia incendiá-los; a chuva derramava-se em catadupas.

Eu aproximava-me da minha casa quando, dobrando uma esquina, fui assaltado por cinco vultos que, silenciosos, principiaram a espancar-me, como se batessem com varinhas de junco os cachos de arroz em um paiol. Em vão bradei socorro; as vozes da tempestade abafaram os meus gritos de agonia; defendi-me; feri com a chave da porta na face o chefe desses assassinos, reconhecendo nele o alferes Pacheco, que vergou à impetuosidade do golpe; porém a minha coragem assanhou ainda mais a barbaridade dos meus inimigos, que me deixaram inanimado, provavelmente considerando-me cadáver...

Fiquei na verdade em péssimo estado: o meu corpo estava coberto de chagas profundas; perdi por alguns dias o uso da razão; uma febre constante e devoradora absorvia o resto das minhas forças; os médicos desenganaram-me; o povo interessava-se por mim, porém a polícia... a polícia tudo ignorava!

Um mês depois eu estava livre de perigo; e, quer em meus desvarios, quer durante a convalescença, nunca, nunca esqueci o nome de Amália; nunca maldisse de seu pai, mas também não se apagou dos meus sentidos aquela figura sinistra, que fora a primeira em derramar o meu sangue; e sequioso de vingança lembrava-me sempre do alferes Pacheco com tanto ódio quanto idolatrava a mulher que ele me roubava, empregando a vilania, a emboscada, o crime! Esquecê-lo seria possível? Despertei uma manhã possuído dessas ideias sombrias, e meditava em tal assunto quando percebi cair em meu quarto um jornal que seu distribuidor aí introduzira por baixo da janela.

Saí da cama em busca dessa folha; e, maldição!, percorrendo as suas colunas deparei com um artigo pomposo anunciando para o dia seguinte o casamento de D. Amália d’Amarante com o fazendeiro, alferes Pacheco de Sousa! Esses períodos que li me produziram o desfecho de pesadelo terrível, cujo efeito não sei descrever! O médico mais tarde surpreendeu-se da transformação moral em que me encontrou, cuja origem eu lhe ocultei. O meu plano estava formado; eu aguardava a noite para realizá-lo.

Com que ansiedade não a esperei! quanto não me custou ela a chegar! quanto não me pareceu vagarosa a marcha dos ponteiros do meu relógio, que fixamente eu encarava sobre o “guéridon”! com que sensação não recebi os dúbios reflexos da madrugada coados através das frestas, empalidecendo as paredes do meu aposento! com que prazer selvagem não ouvi o primeiro dobrar do sino da matriz chamando os fiéis para a missa! Esse toque imponente já me achou de pé, vestido de preto como o condenado que deve subir os degraus do patíbulo. Corri para a igreja, ainda invadida dos misteriosos ecos da solidão; penetrei cautelosarnente pelos corredores até alcançar o seu altar-mor; ocultei-me ali, por baixo dessas tábuas forradas de damasco e rendas, que sustêm a ara sagrada; assentei-me sobre um esquife; ouvi o murmúrio dos lábios das turbas suplicando a Deus paz e conforto; ouvi as orações do sacerdote, que cabiam sobre a minha cabeça; ouvi o sacristão vibrar a campa, o padre elevar a hóstia, o povo ajoelhar-se implorando a clemência do Filho de Deus e... insensível, persisti em o meu negro propósito, conservando-me inabalável, assentado no esquife, cerrando entre os punhos um revólver carregado com seis cápsulas.

A dor corrosiva apagara do meu seio todos os preceitos humanos, reduzindo-me à condição do canibal faminto, que espreita o momento de dilacerar a vítima imbele! O sopro da vingança alimentava os meus debilitados membros gastos pela moléstia e desespero. A crise da loucura ditava as minhas ações.

O casamento de Pacheco, contra o hábito geral, deveria efetuar-se às 9 horas da manhã, e eu queria assistir a ele; queria... matar esses noivos venturosos... e suicidar-me! Que alienação!

Ei-los, enfim, que entram na igreja; a cerimônia principia com todas as pompas próprias da fortuna vaidosa; vão receber a benção sacerdotal quando... qual espectro medonho, erguendo-se de um túmulo, eu surjo do meu esconderijo com o revólver em punho, apontando para Pacheco... Houve uma rápida confusão entre os assistentes; um suspiro magoado exalou-se do seio de Amália.

Meu Deus! como ela estava bela com as suas roupas de noiva, ou antes com a sua túnica de mártir!

Desmaiei...

Recuperei o uso das minhas faculdades em um hospital, em um quarto gradeado de ferro, onde me haviam encerrado como doido furioso! O que não conseguirão os homens do dinheiro!

Graças a empenhos valiosos rompi esta situação ridícula, sujeitando-me todavia a partir de Campos.

Parti; durante três anos errei pelas grandes capitais, não poupando nem a minha saúde, nem a minha pequena fortuna. Nos hotéis, levando urna vida licenciosa, tentara debalde afogar a lembrança amarga desse amor funesto. As rugas prematuras sulcaram a minha fronte; os meus cabelos pratearam-se; o meu coração forrou-se de uma camada de gelo. As mulheres de vida fácil presavam-me, porque eu desprezava os seus afagos, que no entanto comprava com generosidade. Era um verdadeiro Jacques Rolla; e, como ele, quando percebi que a minha bolsa murchava como murchara o meu seio, lembrei-me de um gatilho de pistola para cortar a minha miserável existência, e extrair o último suspiro proferindo urna maldição à sociedade, colando os lábios, frios pelo hálito da morte, contra os lábios da desgraçada filha dos lupanares que arrancasse da minha mão de cadáver a minha última peça de ouro, reservada para o meu transporte ao hospital.

Talvez ela, mulher perdida, tirasse ainda do seu indiferentismo uma lágrima que rolasse sobre o meu lívido semblante. Quem sabe!

Aproximava-se o momento decisivo de cumprir este cálculo quando recebi uma carta de Campos anunciando a morte de um amigo que me legara a sua fortuna, assaz considerável para dar-me mais alguns anos do desregrarnento. Corri a buscá-la...

Urna noite, apeara-me em uma fazenda, quatro léguas distante daquela para onde me chamavam os meus interesses, e aí pedira hospitalidade. Pouco depois, um pajem conduzia-me à sala de jantar para tomar alguma refeição; oh! surpresa! essa casa pertencia a D. Amália de Amarante, que ali se achava.

Ela reconheceu-me, corou, e... Como estava transformada! Cercada de dois filhinhos, ensinando-lhes a rezar; excessivamente gorda, com os seus mimosos pezinhos perdidos em um chinelão “de capoeiro”; com as lindas madeixas negligenciadas, atadas em coque; vestida com uma “bata” de chita escura, tendo em roda do pescoço um xale rajado de arabescos disformes; Amália, a poética Amália, que eu tanto adorara e por quem tanto padecera, era agora o protótipo da pesada matrona romana, da excelente mãe de família portuguesa.

Amália! lindo botão de rosa, tornaste-te flor descorada e bojuda, dando o teu néctar aos insetos repulsivos, à vespa inoportuna, ao besouro zangão! Amália!

A sua presença despertara as fibras do meu coração; e, preguiçosas como essas rodas de relógios que há muito arrastam mal e caprichosamente os ponteiros e de repente os tangem, e a campa principia a vibrar sem interrupção, assim elas se agitaram, e uma nova quadra de vida as viera afinar. Perderam as ilusões, que as paralisaram.

Regresssando à cidade, sacudi a poeira de uma mala, que desde a minha desventura ficara fechada no canto do quarto de um amigo, que a conservara fielmente. Ela encerrava o FIGURINO, retrato perfeito de Amália; quis vê-lo, para melhor comparar e apreciar essa alteração.

Oh ! desgraça! Esse quadro também experimentara a zombaria cruel do tempo; coberto de mofo, roído pelas baratas, desfeito pela umidade, o que restava dele? Nada; nada, senão as cores dúbias do vestido; os seus traços provocavam a irrisão! Deitei-o para o lado, e vim para a mesa redigir um anúncio para a LUX !, pondo em loteria o meu coração, valendo cada bilhete 500 em moedas novas de níquel. Juro que ele reverdeceu e ainda é digno de qualquer moça que seja bela, como era bela D. Amália d’Amarante, bela como era belo o meu FIGURINO!

Comprai bilhetes, minhas senhoras; comprai, porém cuidado com os papais! Não colhi a herança que me trouxera a estas ribas; ela submergiu-me em um intrincado labirito de acrimoniosas demandas, às quais renunciei em troca da paz de espírito; em compensação, adquiri o hábito do trabalho, e... que decepcão! Recordo-me que a LUX! não aceita anúncios e propagandas... Estou logrado, tanto melhor; porque não me seria difícil deparar com um segundo Patrocas, encadernado em maior orgulho e ambição...

Farwel ! farweIl ! farwel!

F. GIL

Campos, 10 de dezemnbro de 1874.

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* Conto filiado à estética romântica, publicado como folhetim na Revista LUX!, Rio de Janeiro, 1874, pp. 146-8, 162-5 e 178-82.
** Francisco Gil Castelo Branco (Livramento, atual José de Freitas – PI, 1848, Marselha - França, 1894) foi diplomata, jornalista e escritor (romancista e contista filiado à estética romântica). Formado em Letras na França, residiu no Rio de Janeiro, onde colaborou em vários periódicos, como Revista Lux!, e jornais, como Gazeta Universal e Diário de Notícias. Exerceu o cargo de cônsul geral do Brasil em Assunção (Paraguai) e em Marselha (França). Publicou, em folhetins, A pérola no lodo, romance humorístico (1874), Um figurino, conto (1874), Contos a esmo (1876), Os gansos sociais (1878), Ataliba , o vaqueiro, conto (1878), Pobreza não é vício (1884).
*** Atualização ortográfica e notas por Airton Sampaio, escritor e professor no Departamento de Letras da Universidade Federal do Piauí. Foram mantidas as grafias de certos nomes próprios, como Goytacazes.

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