Glaucia Alves Carneiro**
Nayron Klecyo Pereira da Silva
Vera Lúcia Macêdo da Silva
O presente artigo tem como objetivo mostrar que ‘Somos todos inocentes’ de O. G. Rêgo de Carvalho, é um romance regional e não regionalista, apontando três aspectos que diferenciam o primeiro do segundo: ser um romance psicossocial, não se valer de temática como a seca, que apresenta o homem em conflito com a terra, e não mimetizar a linguagem típica da região, predominando a linguagem padrão.
‘Somos todos inocentes’, de O. G. Rêgo de Carvalho, é ambientado em 1929 em Oeiras, que serve como pano de fundo para narrar a história de personagens que condensam uma carga de conflitos consigo mesmos e com os outros. O romance revela uma Oeiras com seus costumes provincianos ainda supervalorizados pela sociedade da época, embora já em decadência.
Com isso, O. G. Rêgo de Carvalho remonta no romance a sociedade oeirense de 1929, com seus casarões, sintetizados na figura do Sobrado, festas embaladas pela valsa e pelo samba (como mostrado na feita para Raul), ritos fúnebres, com sermão do padre, velhas carpideiras rezando ladainhas e viúvas chorando lamentações vazias, falação da vida alheia, enfim, manifesta-a tenuemente, para ali desenrolar toda a narrativa e as peripécias que a envolvem.
Segundo George Stewart, apud Afrânio Coutinho (2004, p.235), toda obra de arte é regional, no sentido mais largo do conceito, quando ambientada em um local particular. O. G. Rêgo de Carvalho localiza a história em Oeiras, mas universaliza o romance ao deixar em evidência a introspecção dos personagens, sublinhando seus pensamentos e angústias advindas de antigos embates familiares, do ciúme e da ambição, estes dois últimos bem retratados na figura de Amparo, que para casar-se era capaz de passar por cima dos sentimentos da melhor amiga, Dulce, e ainda saborear-lhe o sofrimento.
Nesse aspecto, pode-se dizer que o romance já não segue o cânon do regionalismo, que se presta a pintar a cor local (Coutinho, 2004) e o ‘modus vivendi’ de uma dada região de forma prioritária, deixando o íntimo das personagens em segundo plano. Contudo, o que ocorre em ‘Somos todos inocentes’ é o avesso: as personagens e seus dilemas estão em primeiro plano.
Quanto ao fato de o romance não se valer da temática da seca, bem como não apresentar o homem em conflito com a terra ou dela sendo vítima (Coutinho, 1996), como em regra o fazem os regionalistas, O. G. Rêgo de Carvalho “quebra”, mais uma vez, “a linha do regionalismo” (KRUEL, Kenard, Fortuna Crítica, p.49). Aliás, o autor, em resposta a Raul Lima, no Diário de Notícias (KRUEL, Kenard, Fortuna Crítica, p. 49), diz que “o Nordeste não é apenas secas e cangaço, e que ele, como escritor, devia ter outros compromissos sem ter que imitar seus antecessores.”
Sob esse aspecto, vale dizer que a preocupação do autor não é denunciar as mazelas da terra, mas mostrar uma Oeiras decadente e hipócrita. ‘Somos todos inocentes’ evidencia o homem em conflito com o homem e consigo mesmo, sempre jogando a culpa nos outros, quando, na verdade, os ‘outros’ são o próprio ‘eu’ não admitido.
Quanto à linguagem, é usada no romance predominantemente a maneira padrão. Isso é talvez explicado pela formação clássica de O. G. Rêgo de Carvalho. Além do mais, o romance se passa em uma Oeiras arcaica, que procura sustentar tradições, e nada melhor que expressar essa condição através de uma linguagem ainda presa a um português lusitano. O autor não faz isso de modo ingênuo, pois tem consciência de que aquela sociedade era (e talvez ainda seja) apegada ao passado mais que ao presente e ao futuro.
É necessário dizer ainda que O. G. Rêgo queria escrever um romance que fosse recepcionado não só no Piauí, mas também fora do estado. Sabendo disso, utilizou-se de sua formação clássica para que o seu romance fosse lido e identificado não só com a cultura do Piauí, mas com os seres humanos em conflito. É o que se pode perceber no trecho seguinte:
"- Por favor, acuda!
Reconhecendo a voz de Dulce (“tem uns seios lindos”), descerrou a janela, deslumbrado em vê- la de chambre.
- Paizinho está morrendo!
[....]
Daí a momentos o farmacêutico saiu e acompanhou-a. Cansado de impelir o ventre enorme, ia-se arrastando atrás, contente em ver-lhe as formas do corpo, quando o vento bulia com o chambre." (Ficção reunida, p. 115).
O que se vê no trecho é o rigor sintático da linguagem, que faz menção ao léxico regional (‘acuda’, ‘bulia’, ´paizinho’), mantendo-se um equilíbrio entre o que pode ser sutilmente identificado com a região de Oeiras e o que pode ser universalizado. Segundo Lúcia Miguel-Pereira (1973), só pertencem ao regionalismo as obras que conseguem fixar os tipos, costumes e linguagem locais, de modo que os hábitos de vida se discrepem dos da civilização niveladora. O romance ´Somos todos inocentes´, apesar de descrever aspectos geográficos da região, como o rio Mocha e a igreja da Vitória, e de se reportar a costumes da Oeiras de 1929 e até de trazer na linguagem uma certa identidade regional, consegue fazer isso não peculiarizando esse modo de vida, mas, no feliz dizer de José Afrânio Moreira Duarte (Fortuna Crítica, p. 111), sendo uma ficção que pode desenrolar-se em qualquer lugar do interior do Brasil ou fora dele, ganhando, portanto, caráter universal.
Airton Sampaio, na apresentação do livro de Kenard Kruel, ‘O. G. Rêgo de Carvalho- Fortuna Crítica’, afirma que O. G. não faz uso do regionalismo estreito, que se limita à superfície das coisas, e não explora o exótico do lugar e dos costumes, mas o singular e ricamente diferente. O. G. Rêgo não deixa, assim, de mencionar o regional, mas prioriza a vertente psicossocial, e essa mesclagem dos dois aspectos é que faz de ‘Somos todos inocentes’ um romance regional não regionalista.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARVALHO, O. G. Rêgo de. Somos todos inocentes. In. : O. G. Rêgo de Carvalho: ficção reunida. 3 ed. Teresina: Corisco, 2002.
COUTINHO, Afrânio dos Santos. A literatura no Brasil: era realista/era de transição. 7. ed. São Paulo: Global, 2004.
DUARTE, José Afrânio Moreira..In: KRUEL, Kenard (org). O. G. Rêgo de Carvalho: fortuna crítica. Teresina: Zodíaco, 2007
KRUEL, Kenard. “ “. In: KRUEL, Kenard (org). O. G. Rêgo de Carvalho: fortuna crítica.
MIGUEL-PEREIRA, Lúcia. História da literatura brasileira: XII - Prosa de Ficção: de 1870 a 1920. 3 ed. Rio de Janeiro/J. Olimpio; Brasília/INL, 1973.
SAMPAIO, Airton. “Apresentação”. In: KRUEL, Kenard (org). O. G. Rêgo de Carvalho: fortuna crítica. Teresina:: Zodíaco, 2007.
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*Artigo produzido na disciplina Literatura nacional: autores piauienses, ministrada na Ufpi, em 2011/1, pelo prof. Airton Sampaio.
**Estudantes de Letras na Ufpi.
Um comentário:
Continuo aprovando a idéia de abrir espaços para alguns alunos/alunas maravilhosos que volta e meia aparecem no cotidiano de sala de aula. É o que tenho observado aqui. Quanto ao breve artigo sobre Somos Todos Inocentes do homônimo O. G. Rego de Carvalho vejo alguns problemas de incoerência na convergência/dicotomia: Regional X Regionalismo, mas nada que numa extensão futura do artigo não se possa corrigir. Valeu!
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